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Marcelo Gleiser, uma necessária voz moderada

O mais novo projeto de Marcelo Gleiser é um instituto que promoverá o diálogo entre ciência e filosofia. (Foto: Pedro Serápio/Gazeta do Povo) (Foto: )

O Tuca, na PUCPR, esteve lotado na noite de segunda-feira para o diálogo entre o astrofísico Marcelo Gleiser e o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura. O evento fechou o primeiro dia do Átrio dos Gentios, que ocorre na universidade até quarta-feira. Tive a felicidade de fazer parte da mesa deste diálogo, mas pude conversar mais longamente com Gleiser e com Ravasi antes que eles fossem ao palco do Tuca. Na entrevista, o astrofísico conta por que, sendo um não crente, ele se importa com o diálogo entre ciência e religião, explica suas críticas ao ateísmo militante e ao princípio antrópico, e dá detalhes de seu novo projeto: um instituto para promover a interação entre ciência e filosofia. Um trabalho que talvez Gleiser tenha de conciliar com futuros compromissos no Vaticano. “O cardeal Ravasi me disse que indicaria meu nome para um conselho”, contou. A Pontifícia Academia de Ciências, talvez? “Aceitaria com certeza!”

Marcelo Gleiser é crítico do ateísmo militante, que erra no conteúdo e na estratégia de divulgação de suas ideias. (Foto: Pedro Serápio/Gazeta do Povo)

Marcelo Gleiser é crítico do ateísmo militante, que erra no conteúdo e na estratégia de divulgação de suas ideias. (Foto: Pedro Serápio/Gazeta do Povo)

Por que participar deste diálogo entre ciência e fé?

Porque, ao contrário de outros cientistas que se recusam a ter esse tipo de conversa, acho que ela é absolutamente essencial por vários motivos. Eu tenho até um livro com o frei Betto, melhor exemplo que isso não dá. As pessoas têm uma visão muito distorcida da ciência, da religião e da relação entre ambas. Elas imediatamente colocam ciência e fé como antípodas em confronto constante. Minha visão é um pouco mais histórico-cultural. Vejo a ciência como uma manifestação do esforço humano em se engajar com o mistério da existência. E a religião é, também, uma manifestação do esforço humano em se engajar com o mistério da existência. Tanto uma quanto outra, de certa forma, vêm da mesma fonte. Recusar-se a conversar é recusar-se a olhar para um lado da nossa vida, da existência humana, que faz parte de quem nós somos. É uma conversa perfeitamente natural.

Tanto Criação imperfeita quanto A ilha do conhecimento trazem críticas ao ateísmo militante. O problema dessa corrente é de conteúdo ou de estratégia?

O problema é duplo. Quanto à estratégia, ninguém ganha nada com a violência verbal, com o abuso, com a falta de humildade e de compreensão. Isso é, talvez, algo que esses militantes ateístas possam aprender com alguns líderes religiosos: não apenas a respeitar as diferenças de opinião, mas também a compartilhar o conhecimento humano de uma forma mais humilde. Há uma posição militante, radical – eu diria “evangélica” – do ateísmo dos “quatro cavaleiros do apocalipse” [Richard Dawkins, Daniel Dennett, Sam Harris e o falecido Christopher Hitchens], se bem que Harris está melhorzinho agora, ele descobriu que a espiritualidade não é algo necessariamente ligado à religião institucionalizada.

Jerry Coyne poderia tomar o lugar do Harris?

Não creio. Coyne para mim é um fantoche, só repete o que os outros falam. Charles Darwin tinha Thomas Henry Huxley, que até foi apelidado de “o buldogue de Darwin”? Coyne é o buldogue do Dawkins.

E quanto ao conteúdo do ateísmo militante?

O ateísmo, se ele é definido daquela forma radical, é o “acreditar em não acreditar”. Isso é uma inconsistência lógica que vai contra a definição do método científico, que é obter – ou tentar obter – alguma evidência empírica para basear seus argumentos. Acreditar em não acreditar é destruir imediatamente qualquer esperança de uma evidência empírica, é repetir o erro que você está criticando.

É preciso ter fé para dizer “Deus não existe”?

A ciência não consegue “desprovar” a existência de algo; ela só é capaz de comprovar a existência. Esse tipo de argumento do ateísmo militante cientificamente não faz sentido. Você pode dizer, como Carl Sagan dizia, acho que citando um antropólogo da UCLA, que “ausência de evidência não é evidência de ausência”. Sagan aplicava essa frase à busca por vida extraterrestre: o fato de que não a achamos ainda não significa que ela não exista. Mas podemos usar o raciocínio para qualquer outra divindade – não apenas o Deus judaico-cristão – ou seres estranhos/mitológicos. Podemos dizer que é “altamente improvável” ou “altamente surpreendente” que algo assim exista, mas não conseguimos provar que não exista. Então podemos, sim, ver em afirmações como “Deus não existe” um ato de fé, pois não há nenhuma evidência que apoie essa convicção. O que é fé, de uma certa forma? Você tem evidências, mas não são, digamos, evidências científicas.

O agnosticismo, então, seria uma posição mais intelectualmente honesta?

Venho de família judaica, e há pessoas que me chamam de ateu, o que é um grande erro. Não sou ateu. Quando me perguntam o que eu sou, imediatamente respondo que a única posição que considero consistente com o método científico é o agnosticismo – termo, aliás, que foi criado por Thomas Huxley, de quem falamos há pouco. Acho que Dawkins precisava ler mais Huxley, ele tem coisas bem interessantes sobre o assunto.

O importante nisso tudo é que as pessoas entendam que existem diferenças absolutamente fundamentais entre a metodologia científica e a fé religiosa, mas não dá para seguir esse caminho cego e unilateral do evangelismo ateu.

No diálogo travado na PUCPR, Gleiser e o cardeal Ravasi advertiram para duas pretensões errôneas: a de que a ciência, mais cedo ou mais tarde, terá todas as respostas; e a de que a ciência é o único modo válido de conhecimento. (Foto: Pedro Serápio/Gazeta do Povo)

No diálogo travado na PUCPR, Gleiser e o cardeal Ravasi advertiram para duas pretensões errôneas: a de que a ciência, mais cedo ou mais tarde, terá todas as respostas; e a de que a ciência é o único modo válido de conhecimento. (Foto: Pedro Serápio/Gazeta do Povo)

Sua crítica ao princípio antrópico afirma que as constantes e parâmetros da natureza são uma criação humana – eventuais civilizações extraterrestres, por exemplo, poderiam ter constantes e parâmetros diferentes dos nossos. Como essa “arbitrariedade” se relaciona com a objetividade com que a ciência pretende descrever o universo?

São coisas diferentes. As constantes da natureza são uma espécie de alfabeto, e é com elas que escrevemos as equações que descrevem a natureza. A ciência, para mim, é uma narrativa construída – mas não no sentido pós-modernista do termo. Quando digo que ela é construída, me refiro ao fato de que nós, humanos, olhamos para a natureza meio cegos, meio míopes; só vemos parte do que está lá fora. O que conseguimos enxergar nós tentamos explicar com a ciência. À medida que vamos construindo métodos para descrever o que está acontecendo, o que se vê em experiências e observações, vamos criando uma linguagem que expressa o que estamos descobrindo, e essa linguagem precisa dessas constantes da natureza. Um exemplo: não há dúvida de que o fato de a força da gravidade ter uma constante “g”, que se aplica tanto entre o Sol e a Terra quanto entre dois buracos negros que vão se chocar a bilhões de anos-luz daqui, diz que existe uma uniformidade em como a natureza se manifesta através do espaço. Isso é o que faz a ciência possível. Se isso não fosse verdade, nós não conseguiríamos falar nada sobre o que acontece fora daqui. O fato de que a natureza tenha uma certa uniformidade torna isso possível.

A confusão do princípio antrópico é achar que essas constantes estão dizendo alguma coisa sobre escolhas. Quando você vai construir uma casa, tem várias opções arquitetônicas. Mas os defensores do princípio antrópico creem que o fato de o universo ter sido construído de forma a ter essas constantes da natureza faz com que esse universo seja uma escolha. Isso implica duas opções. Na primeira, a opção religiosa, você vai dizer “essa é a escolha do designer cósmico”, ou seja, Deus construiu um universo com um certo propósito – que propósito? Pode ser, por exemplo, a vida humana, ou vida inteligente –, e por isso a natureza tinha de agir de uma certa forma, e para isso ela tinha de ter essas constantes. Se essas constantes são um pouquinho diferentes, kaputt, vai tudo embora. A opção que não passa pela religião se baseia no seguinte raciocínio: existem essas constantes, e elas poderiam ter outros valores. Portanto, nosso universo não pode ser o único; deve haver um multiverso lá fora, e nosso universo passa a ser uma aberração dentre todos os outros universos que existem. Afinal, há um intervalo muito pequeno para essas constantes de modo que possamos existir, é uma situação de raridade estatística.

Mas há uma terceira opção, que é a minha: nem existe um designer cósmico, nem somos uma raridade estatística dentro de um multiverso, mas simplesmente somos seres humanos limitados que vivemos cercados pelo mistério, e nesse mistério buscamos entender o que está acontecendo da melhor forma possível. As constantes da natureza são esse alfabeto que constrói essa linguagem com a qual descrevemos a natureza. Não existe nada de misterioso nela. É óbvio que, se essas constantes fossem outras, se a relação entre a carga do elétron e a carga do próton (ou a massa do elétron e a massa do próton) fosse diferente, o Sol não existiria, nós não existiríamos. Mas é óbvio que estamos aqui porque essas coisas são assim. O valor das constantes é uma questão a posteriori. Descobrimos isso e agora estamos querendo justificar esse valor de alguma forma. Pode até ser possível essa justificativa, mas acho que não precisamos nem puxar para um lado, nem para o outro.

Em Criação imperfeita, há uma frase que me intriga: “Um mundo assimétrico não pode ser obra de um Deus perfeito”. Isso não é encurtar demais o braço de Deus? Se é justamente a assimetria que tornou possíveis tantas coisas, como seu livro explica, Deus não poderia ter criado um universo assimétrico?

Esse é o argumento de que Deus pode tudo, de todas as maneiras.

É, estamos correndo o risco de ser um pouco voluntaristas aqui.

Então, dentro desse argumento da onipotência divina, tudo é possível. Mas aí não há argumento. Se tudo é possível, sim, dentro dessas várias possibilidades existe o universo assimétrico. Mas, se você olhar para a história da teologia, você vê que a ideia predominante é a da perfeição divina, com a criação refletindo essa perfeição do criador. É interessante entender: se Deus realmente construiu tudo, por que ele criou certas assimetrias ou certos problemas de design que são desagradáveis? Tempos atrás escrevi uma coluna para a Folha de S.Paulo que terminava dizendo “coitado do besouro”, porque se ele cai de cabeça para baixo ele morre, não consegue desvirar. O Deus dos besouros não pode ser um Deus muito simpático. Os pobres dos besouros deveriam ter uma chance.

As descrições da divindade em Criação imperfeita e A ilha do conhecimento costumam ser a do “Deus das lacunas” ou do “Deus relojoeiro” de William Paley e da antiga teologia natural britânica. Não há, mesmo, outras possibilidades?

Uma coisa que confunde muito as pessoas, e também a mim, é a ideia do infinito. É um mistério. Uma vez meu filho me perguntou quanto era “infinito mais infinito”, e eu respondi “infinito”. E zero mais zero? É zero. Ele continuou: “então zero e infinito são os dois únicos números que, somados a si mesmos, dão o mesmo valor?” E eu disse: “E um é o oposto do outro: o zero é nada, o infinito é tudo. Mas o infinito não é um número, é uma ideia”. E é uma ideia profundamente complexa que se estende não só na matemática, mas na imaginação humana. O que complica a discussão sobre a natureza divina é isso. Estávamos falando de onipotência, de tudo ser possível. Eu me lembro de quando escrevi o livro com o frei Betto; estávamos falando sobre isso e eu perguntei “mas e então, qual a saída?” Ele respondeu que via Deus como amor, como a manifestação do amor divino, cósmico; as pessoas carregam isso, todas as criaturas carregam isso de alguma forma, isso é a fagulha divina que nós todos temos. Eu acho essa uma imagem muito bonita, mas não vejo necessidade de chamar esse sentimento de Deus. Podemos chamar de amor. O paradoxo, para mim, está na atribuição desses “superpoderes” que constituem um confronto essencial com a ideia de racionalidade no mundo.

O mais novo projeto de Marcelo Gleiser é um instituto que promoverá o diálogo entre ciência e filosofia. (Foto: Pedro Serápio/Gazeta do Povo)

O mais novo projeto de Marcelo Gleiser é um instituto que promoverá o diálogo entre ciência e filosofia. (Foto: Pedro Serápio/Gazeta do Povo)

Seus livros entram sem medo nenhum em temas filosóficos…

Eu sou membro da Academia Brasileira de Filosofia, e A ilha do conhecimento é essencialmente um livro sobre epistemologia, sobre a natureza do conhecimento. Fiquei muito feliz quando alguns filósofos americanos de renome disseram que gostaram das minhas ideias, porque em geral eles têm essa atitude de “não pise no meu pé”. Estou entrando cada vez mais por esse caminho.

A ideia fundamental é a seguinte: existem certas questões que hoje estão na fronteira científica, mas que já fazem parte de um diálogo humanista há milênios. E hoje não podem ser respondidas nem por uma, nem por outra. Pensemos no livre arbítrio. Há cientistas neurocognitivos e até físicos trabalhando nisso, mas também há filósofos e teólogos. Então, para se ter uma visão coerente – eu gosto de falar em “complementar” – é preciso reconhecer que existe uma complementariedade no saber e que tanto a ciência quanto as humanidades têm muito a aprender umas com as outras.

Como será o trabalho desse instituto?

Começaremos em julho, e é uma ideia que eu queria trazer pro Brasil. Teremos diálogos públicos em grandes cidades americanas, começando por Nova York, com um cientista e um humanista, ou líder espiritual, ambos de renome – eventualmente haverá um livro com as transcrições desses debates. No primeiro deles, o neurocientista Antonio Damasio e o filósofo David Chalmers vão falar sobre o mistério da consciência humana. Teremos também um programa de fellows, com pesquisadores famosos e iniciantes tentando trabalhar as interfaces entre ciência e humanidades. E, ainda, dois grandes cursos on-line, um ministrado por mim, sobre A ilha do conhecimento e com tradução em português, e o outro sobre livre arbítrio, produzido por um neurocientista que também é muito filosófico.

O financiamento para esse instituto é da Fundação John Templeton, para a qual o ateísmo militante torce o nariz. Como é trabalhar com essa organização?

Temos dois grupos de cientistas. Há muitos físicos muito famosos que ganham bolsas da Templeton. São do mundo inteiro, mas especialmente americanos e britânicos. E há os que não querem nem saber disso, porque a Templeton tem uma história cristã. Bobagem. Uma bolsa gigantesca como essa que recebi não teve praticamente nenhuma exigência por parte da fundação. Nisso eles são totalmente liberais. É claro que eles querem que haja um componente espiritual. Bom, eu sou uma pessoa espiritual, faço ciência porque sou uma pessoa espiritual. Acho sensacional que uma fundação com uma base religiosa esteja bancando projetos não apenas em física, mas em várias outras áreas, projetos que governos jamais financiariam, pois são pesquisas de alto risco e governos só financiam pesquisas de baixo risco. Não vejo o menor problema em trabalhar com a Templeton. Se acontecer algo mais adiante, posso repensar, mas atualmente nossa relação é muito boa.

(Aviso: A Fundação John Templeton, citada neste post, ajudou a bancar a viagem e a hospedagem do blogueiro para um workshop em Oxford, em 2013)

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