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Estamos às vésperas do Natal, quando comemoramos o nascimento do Verbo feito carne – C.S. Lewis chama a Encarnação de “o Grande Milagre”; aliás, esse ano tratamos desse assunto algumas vezes aqui na coluna, seja resenhando o livro de Lewis sobre milagres, ou recomendando o trabalho dos colegas portugueses do Café Ciência e Fé sobre o “Milagre do Sol” de Fátima. Então, para terminar 2024, nada melhor que uma notícia bem interessante: a Igreja Católica acaba de reconhecer o 71.º milagre realizado no Santuário de Lourdes, na França. É o primeiro caso envolvendo um britânico, e que levou mais de um século entre a cura e o reconhecimento oficial.
John Traynor era filho de mãe irlandesa, de quem herdou a fé católica e a devoção mariana. Alistado na Marinha Real britânica durante a Primeira Guerra Mundial, foi ferido em combate em duas ocasiões: em 1914, na Bélgica, foi atingido na cabeça por estilhaços de explosivos; no ano seguinte, foi alvejado por fogo de metralhadora na desastrosa campanha de Gallipoli, na atual Turquia. O conflito acabou com ele: passou a ter ataques epiléticos e perdeu os movimentos de um braço; as tentativas cirúrgicas de tratá-lo acabaram paralisando parcialmente suas pernas. Em julho de 1923, a Arquidiocese de Liverpool, onde Traynor vivia, realizou sua primeira peregrinação a Lourdes, e o ex-soldado resolveu ir, contra o conselho dos seus médicos, de sua família e até do clero local, receoso de que Traynor morresse durante a viagem.
A história de John Traynor é mais um atestado do rigor que a Igreja Católica usa na análise de curas atribuídas à ação divina
Mas Traynor juntou o dinheiro, foi a Lourdes, banhou-se nove vezes em uma das piscinas do santuário e, dois dias antes de voltar à Inglaterra, parou de ter ataques epiléticos, voltou a caminhar e a mexer o braço direito. Estava curado. O protocolo usado em Lourdes nesses casos é bastante rigoroso: a pessoa que afirma ter sido curada é imediatamente examinada pelo comitê médico do santuário, e por qualquer outro médico que esteja em Lourdes naquele momento, independentemente de crença religiosa. O comitê examina todo o histórico da pessoa, que tem de enviar toda a papelada a seu respeito; todo o procedimento é tão exigente que nem todas as pessoas escolhem passar por ele quando experimentam o que consideram ser uma cura milagrosa. Voltando à Inglaterra, Traynor também foi examinado pelos seus médicos, que ficaram estupefatos: ele havia se curado subitamente e completamente.
A comissão sediada em Lourdes só vai até um ponto, o de concluir que determinada cura é inexplicável do ponto de vista médico-científico. A declaração de que realmente houve um milagre depende do bispo da localidade onde a pessoa curada vive. É aqui que o caso de Traynor empacou por um século. O doutor Alessandro de Franciscis, chefe do Escritório de Observações Médicas de Lourdes desde 2009, contou à revista America que seus antecessores já haviam afirmado em 1926, ano em que Traynor retornou a Lourdes, que a cura do veterano de guerra não tinha explicação médica. A documentação produzida pelo comitê foi publicada no jornal do santuário – mas não chegou a ser enviada ao arcebispo de Liverpool. “Era o pós-[Primeira] guerra, havia muitos problemas de organização e comunicação no santuário. Normalmente, as curas consideradas inexplicáveis pelo santuário nos anos 20 e 30 só foram tornadas públicas lá pelos anos 50”, afirmou De Franciscis.
No ano passado, quando se comemorou o centenário da primeira peregrinação da Arquidiocese de Liverpool, os médicos de Lourdes desenterraram o caso, e o bispo de Tarbes e Lourdes enviou a papelada à Inglaterra; em 8 de dezembro, solenidade da Imaculada Conceição, o arcebispo Malcolm McMahon anunciou o reconhecimento do milagre, fazendo de Traynor o 71.º caso de cura milagrosa no santuário francês – a lista oficial ainda nem chegou a ser atualizada. A data escolhida pelo arcebispo não é aleatória; afinal, foi com as palavras “eu sou a Imaculada Conceição” que a Virgem Maria se descreveu ao aparecer a Santa Bernadette Soubirous, em 1858.
Após a cura, Traynor passou a ir com frequência a Lourdes, e se juntou a uma confraria que ajudava na recepção dos peregrinos, especialmente aqueles doentes, que se banhavam nas piscinas do santuário, como ele fizera em 1923. O veterano morreu em 1943, de circunstâncias totalmente não relacionadas com os males que o afetavam antes de sua ida ao santuário mariano – outro requisito para se atestar uma cura milagrosa é seu caráter definitivo.
A história de John Traynor é mais um atestado do rigor que a Igreja Católica usa na análise de curas atribuídas à ação divina. O santuário de Lourdes recebe, literalmente, dezenas de milhares de relatos de pessoas que dizem ter melhorado ou se curado de inúmeras doenças. Uma fração ínfima (menos de 1%) desses casos chegou ao ponto do reconhecimento oficial como uma cura milagrosa. É o que eu já chamei, anos atrás, de “ceticismo sadio”, que emprega os melhores recursos da ciência para esgotar todas as possibilidades naturais, antes de atestar o caráter sobrenatural de um evento.
Um santo Natal a todos os leitores!
O Tubo só volta no comecinho de janeiro, e por isso repito o que escrevi na terça-feira passada em minha outra coluna: aproveito essa oportunidade para desejar um santo Natal aos leitores. No dia 26, a Jovem Pan News veiculará a minha participação no programa Entrevista com D’Avila; o apresentador Luiz Felipe d’Avila e eu conversamos sobre o legado do cristianismo para a sociedade, e falei um pouco sobre o Deus que se faz carne e vem ao mundo como uma criança frágil. Pena que ali na hora acabei não me lembrando da minha canção de Natal preferida: Tu scendi dalle stelle, composta por Santo Afonso Maria de Ligório, muito popular na Itália, mas bem pouco conhecida no Brasil. Ela fala do Deus que treme de frio na gruta, do Criador do mundo a quem faltam a vestimenta e o fogo, tudo por amor a nós. Se você assistir à transmissão da Missa do Galo no Vaticano (ou se tiver a felicidade de estar lá pessoalmente), certamente irá ouvi-la ao fim da celebração. Deixo abaixo três versões dela: com o coro da Basílica de São Pedro, com Andrea Bocelli e com Luciano Pavarotti.