Não sejamos ingênuos. Boa parte da imprensa não suporta nem sequer imaginar que alguém como Damares Alves, pelo que ela é e pelo que defende, ocupe um cargo ministerial. A “extrema-imprensa”, para usar a expressão que circula pelas mídias sociais, gostaria de ver os religiosos manterem sua fé em segredo e adoraria calar o discurso pró-vida, por exemplo. Por isso, qualquer coisa vale para desmoralizar a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos; se descobrirem que ela colou em uma prova de OSPB na infância, farão com isso carnaval semelhante ao que fizeram com a história do “azul e rosa”, que era obviamente um simbolismo para descrever o respeito às diferenças naturais entre meninos e meninas. Não é o meu caso: respeito a história de vida e admiro a militância da ministra, não apenas na questão do aborto, mas no combate à pedofilia, ao infanticídio indígena, na briga pelos direitos da mulher e das crianças de rua. Por isso, fico muito à vontade para dizer que a ministra errou feio no tal vídeo sobre a Teoria da Evolução que virou notícia em todo canto. Vejam aí:
Para que não fique nenhuma dúvida, segue a transcrição: “A igreja evangélica perdeu espaço na história. Nós perdemos espaço na ciência quando nós deixamos a Teoria da Evolução entrar nas escolas, quando nós não questionamos”. A entrevistadora, pastora Cynthia Ferreira, interrompe: “detalhe, né? É uma teoria”. E Damares continua: “É. Quando nós não fomos ocupar a ciência. A igreja evangélica deixou a ciência pra lá, vamos deixar a ciência sozinha, caminhando sozinha, e aí cientistas tomaram conta dessa área, e nós nos afastamos”. O mais incrível é que tudo isso foi uma resposta a uma pergunta sobre fé e… política! A ciência só entrou na história por iniciativa de Damares.
O vídeo foi publicado ontem, mas não há informação no YouTube sobre quando foi gravado. A entrevistadora se dirige a Damares como “doutora”, não como “ministra”. O jornal O Globo diz que o vídeo é de 2013. Mas a data exata importa menos que o fato de que a fala é um desastre quase que do começo ao fim.
A coisa toda se sustenta na falácia do “é só uma teoria”, que ignora completamente o que seja uma “teoria” no contexto da ciência para adotar o senso comum segundo o qual, “se é teoria, então é porque não foi provado”. Em ciência, “teoria” é uma explicação muito bem fundamentada para aquilo que é observado, que “amarra” tudo o que se sabe sobre certo fenômeno. E a Teoria da Evolução, cara ministra, está nas aulas de Biologia pela mesmíssima razão pela qual a Teoria da Relatividade está nas aulas de Física: porque ambas são a melhor explicação existente para os fatos de que tratam – no caso da evolução, a variedade da vida na Terra e as mudanças pelas quais as espécies passam.
Leia também: O escandaloso caso do general que deseja o criacionismo nas escolas (15 de outubro de 2018)
Mas, para Damares, a evolução entrou nas escolas não pela sua força descritiva da realidade, mas apenas porque os evangélicos se omitiram no questionamento daquilo que, afinal, “é só uma teoria”. Ora, se houve alguma coisa na ciência que tem sido amplamente questionada no último século e meio, foi justamente a evolução. Ela foi bombardeada com argumentos científicos e com argumentos religiosos; aguentou o tranco admiravelmente, inclusive com a ajuda de muitos evangélicos.
Esse negócio de “ocupar a ciência”, desse jeito como foi citado por Damares, me lembra as táticas do polvo gramscista, “ocupando espaços” para submetê-los à sua ideologia, pois a frase me permite concluir que, se os evangélicos tivessem “ocupado a ciência”, a Teoria da Evolução, apesar dos seus méritos, teria sido sufocada em favor de alguma pseudociência. Os evangélicos querem “ocupar a ciência”? Pois que estudem, mas estudem pra valer, que se formem como bons cientistas, trabalhem como tais, ajudem seus irmãos de fé a não ter preconceito contra a ciência, aprendam a enxergar o que descobrem não como um desafio a leituras limitadas da Bíblia, mas como expressão da criatividade divina. Olhem e se inspirem no trabalho de evangélicos como Francis Collins, Denis Alexander, o pessoal da BioLogos, a ABC2.
E aí entra outro ministro, Marcos Pontes, da Ciência e Tecnologia. Em entrevista à rádio CBN nesta quinta-feira, Pontes falou sobre diversos temas, e os jornalistas lembraram a fala de Damares. O ministro ressalvou que não sabe o contexto em que a frase foi dita, afirmou que a Teoria da Evolução está solidamente estabelecida de acordo com o método científico, e encerra com o velho clichê de que “não se deve misturar ciência com religião”. Vá lá, é uma entrevista de rádio, o tempo importa, e de fato há “misturas” de ciência e religião que precisam ser evitadas, mas é o tipo de frase que não diz nada de substancial, reforça um discurso nocivo de afastamento, não ajuda a conquistar os evangélicos que concordam com Damares, e despreza todo o arcabouço intelectual que vem sendo construído no diálogo entre ciência e fé. Claro que o desserviço prestado por Damares é maior, mas, convenhamos, Pontes também não ajudou em nada. Espero que ambos demonstrem, no futuro, uma compreensão melhor e até trabalhem juntos para desmontar preconceitos anticientíficos e antirreligiosos.
Pequeno merchan
Por que a direita brasileira vê na eleição de Trump um impulso para o seu plano em 2026
Bolsonaro prevê desafios para Lula, seja com vitória de Trump ou Kamala; assista ao Entrelinhas
Trump e Kamala empatam na primeira urna apurada nas eleições dos EUA
As eleições nos EUA e o antiamericanismo esquerdista
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS