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“Ciência, ciência, ciência”, lembram dessa? Se é verdade que a ciência de fato nos ajudou a sair da pandemia, por outro lado ela foi transformada em algo muito além do que ela realmente é; foi tratada como algo inquestionável, infalível, a única autoridade possível para nos dizer não apenas o que estava acontecendo nos nossos organismos, mas como deveríamos agir em praticamente todos os âmbitos, inclusive em nossas escolhas morais. A pandemia foi uma ocasião em que vimos exacerbado um fenômeno que havia nascido e se consolidado muito antes de o coronavírus chegar: o cientificismo. E foi para combatê-lo que um cientista cristão, o físico e professor do MIT Ian Hutchinson, escreveu em 2011 seu ótimo Monopolizing knowledge.
O cientificismo é, na definição de Hutchinson, “a crença de que todo o conhecimento válido é ciência. O cientificismo afirma, ou ao menos presume implicitamente, que o conhecimento racional é científico, e tudo o mais que afirme ser conhecimento não passa de superstição, irracionalidade, emoção ou nonsense”. Ele se manifesta de diversas formas: na certeza de que um dia a ciência responderá a todas as perguntas (todas mesmo); no desespero das Humanidades em colocar “ciência” nos nomes de suas disciplinas para conquistar legitimidade (em “Ciência Política”, por exemplo; temos até “Ciências da Religião”...); na convicção de que todos os nossos problemas serão resolvidos pelo avanço tecnológico (o livro tem um capítulo apenas sobre isso); no fim da reflexão moral sobre novas técnicas, bastando o fato de algo ser tecnicamente possível para que seja efetivamente feito sem questionamentos; no recurso exagerado a pesquisas de opinião para “definir” questões complexas; no reducionismo que trata todas as realidades humanas a processos físico-químicos ou ondas elétricas no cérebro; e por aí vai. A coisa é tão impregnada na sociedade que mesmo quem não é um cientificista hardcore acaba absorvendo ao menos algumas dessas atitudes.
“A ciência ainda merece ser levada em alta conta. Ela produz conhecimento real e valioso, sobre os assuntos que estão dentro de sua competência. (...) Mas reconhecer todas essas às vezes admiráveis e frequentemente poderosas características da ciência de forma alguma significa que outras áreas sejam desprovidas de conhecimento.”
Ian Hutchinson, em “Monopolizing knowledge”
Se o leitor já percebeu a contradição implícita nessa ideia de só considerar verdadeiro o que pode ser alcançado pela via das ciências naturais, parabéns: você está com meio caminho andado – o restante Hutchinson vai entregar ao longo do livro, porque ele não se contenta em demonstrar que o cientificismo é furado por ser justamente aquilo que despreza, um postulado filosófico; o autor também vai explicar por que cada uma das alegações feitas pelos cientificistas está errada. Antes disso, no entanto, Hutchinson vai estabelecer as bases para sua crítica: traça a história das correntes de pensamento que desembocaram na mentalidade cientificista, passando pelo Iluminismo, pelo socialismo e pelo positivismo de Comte (embora os cientificistas de hoje não tenham todo esse refinamento intelectual), e ajuda o leitor a identificar as características das ciências naturais, com ênfase na reprodutibilidade e na clareza. Isso porque, se soubermos bem o que é ciência, vamos saber separá-la do seu abuso nas mãos dos cientificistas e não jogaremos fora o bebê junto com a água do banho. A Teoria da Evolução, por exemplo, é ciência (embora tenha algumas características peculiares, por ser também uma espécie de “história da natureza”); usá-la para negar a existência de propósito na natureza, ou negar um Deus criador, ou para promover loucuras como a eugenia, é cientificismo.
Estabelecidas essas bases, Hutchinson parte para o ataque frontal e desmonta as ambições dos cientificistas em um capítulo no qual elenca os argumentos para o cientificismo – por exemplo, “o conhecimento é uno”, “a ciência funciona”, “não há outra alternativa viável para obter conhecimento”, ou “outras explicações enfraquecem a ciência”. O autor mostra que algumas dessas ideias até fazem sentido – por exemplo, de fato o método científico é o que temos de melhor para entender a natureza, e nisso a ciência tem tido grande sucesso em séculos de tentativa e erro –, mas que, mesmo nesses casos, elas servem como uma justificação da ciência, não do cientificismo. Do fato de que a ciência produz conhecimento não se conclui que a ciência forneça todo o conhecimento, nem que apenas a ciência produz conhecimento.
O problema é que o estrago cientificista foi tão grande que, como diz a Terceira Lei de Newton (uma das coisas que a ciência demonstrou funcionar), a reação não tardou. Na outra ponta do cientificismo apareceram coisas como a tal da “pós-modernidade” – que também sofre de uma contradição intrínseca ao pretender que aceitemos como verdade absoluta a ideia de que não existem verdades absolutas – e a conversa de que, no fim das contas, a ciência não passa de “construção social”, é resultado de interesses financeiros e subordinada a eles, precisa ser “decolonizada” e coisas do tipo. Hutchinson dedica um capítulo a esses tipos particulares de negacionismo (sei que a palavra hoje ganhou um peso ideológico indevido, mas é bem adequada para esses tipos de contestação à ciência), com alguns exemplos bem bizarros, como o do autor que chamou a Segunda Lei da Termodinâmica de “etnocêntrica”; e avisa que, quanto mais esse tipo de conversa se espalhar, mais cientistas se agarrarão a visões cientificistas.
E a religião? Até uns 4/5 do livro, Hutchinson deu uma aula formidável de filosofia da ciência, mencionando a religião apenas de passagem. É na parte final que ele explora a relação entre cientificismo e fé, já que o ateísmo militante é cientificista até o talo, e com isso provocou um outro tipo de reação negativa: de tanto ouvir os ateus militantes fazendo todo tipo de ataque à religião usando a ciência, muitos religiosos passaram a ver a ciência com desconfiança – um fenômeno que os próprios cientistas reconhecem, e que já foi tratado em outros livros, como Unscientific America. Para botar as coisas em seu devido lugar, Hutchinson vai desmontando as alegações cientificistas de autores como Richard Dawkins, Daniel Dennett e Steven Pinker, como “a ciência desautoriza a religião”, “a ciência explica a mente” ou “a ciência explica o fenômeno religioso”. E, depois de fazer isso, também mostra as deficiências de outros modelos, como os Magistérios Não Interferentes de Stephen Jay Gould, mostrando que também ele parte de uma premissa cientificista ao deixar os “fatos” apenas para a ciência, reservando à religião o campo dos “valores”.
Em resumo: se quisermos que as pessoas apreciem a ciência, confiem nela, a aceitem como a ferramenta maravilhosa que é dentro do seu campo de atuação, temos de nos livrar do cientificismo que pretende monopolizar o conhecimento distorcendo a ciência e, neste processo, destruindo a razão, como diz o subtítulo do livro. “O conhecimento não é unidimensional. Não é alcançado por uma única estratégia ou método. Os métodos das ciências naturais, ainda que especialmente poderosos em seu domínio, não se aplicam a boa parte do conhecimento que temos. A tentativa de ampliar as fronteiras das ciências naturais para englobar todo o conhecimento, como tem sido o objetivo do cientificismo por séculos, está condenada ao fracasso”, diz Hutchinson no parágrafo final do livro. Não se trata de diminuir a ciência, mas de entendê-la bem e de saber identificar as lorotas cientificistas.