Galileu se apoiou pesadamente em Santo Agostinho para argumentar que, em assuntos relativos à natureza, a Bíblia deveria ser interpretada de acordo com as descobertas da observação sensível. (Imagens: Reprodução)| Foto:

O caso Galileu costuma ser invocado por todos aqueles que defendem haver um conflito intrínseco entre ciência e fé. Esse raciocínio, no entanto, que apresenta um inovador científico batendo de frente com o maior poder religioso de seu tempo, é um tanto falho por descartar diversos aspectos bem particulares do caso Galileu e da própria ciência da época, que estava muito longe de aceitar o copernicanismo como consenso. Lá nos inícios do blog tratei deste tema na resenha de Galileu – pelo copernicanismo e pela Igreja e na entrevista com o autor do livro, Annibale Fantoli. Ele dá uma ideia bem mais abrangente de como se desenrolou a controvérsia copernicana. Mas também está disponível, em português, a íntegra das cartas escritas por Galileu e que levaram ao primeiro processo inquisitorial, o de 1616. O volume Ciência e fé – Galileu Galilei, da Editora Unesp, reúne cinco textos do astrônomo florentino: uma carta a Benedetto Castelli, duas a Piero Dini, a famosíssima carta à grã-duquesa Cristina de Lorena e as Considerações sobre a opinião copernicana. O livro ainda inclui a carta do cardeal Roberto Belarmino ao padre Antonio Foscarini, carta essa que também é constantemente citada aqui no Tubo quando o tema é interpretação da Bíblia. As cartas foram compiladas por Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento, mestre e doutor em Estudos Medievais e professor da PUC de São Paulo. Ele escreve um artigo introdutório e um pequeno texto final com comentários à carta à grã-duquesa Cristina.

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Em nenhum dos dois processos que sofreu, em 1616 e em 1633, a causa da condenação de Galileu foi sua convicção científica. No primeiro caso, o motivo do processo na Inquisição foi a tentativa de Galileu de oferecer uma nova interpretação de passagens da Bíblia, o que era vetado aos leigos na época; e, no segundo caso, seu erro foi ter desobedecido o que havia sido determinado no desfecho do primeiro processo. As cartas ajudam a esclarecer a forma como Galileu se portou durante a controvérsia inicial, pois foram elas que levaram ao processo inquisitorial. Quando escreveu aqueles textos, Galileu já tinha feito várias descobertas com o seu telescópio e já tinha se metido em diversas polêmicas com outros astrônomos, colecionando desafetos que acabaram usando essas cartas para atacar Galileu. Uma delas, a carta a Castelli, chegou a circular por Roma em versões adulteradas especialmente para prejudicar o astrônomo.

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Todas as cartas são permeadas por um eixo comum e giram em torno de uma ideia central: a de que a Bíblia não erra, mas seus intérpretes podem, sim, estar enganados, e corria-se o risco de se “forçar” a Bíblia a fazer a nossa vontade, interpretando-a com o objetivo único e exclusivo de confirmar convicções já existentes – no caso em questão, as convicções relativas ao movimento dos astros celestes, já que havia algumas passagens que pareciam dar a entender que a Terra era imóvel e que o Sol se movia em torno dela. O mais famoso desses trechos, talvez, seja aquele do capítulo 10 do livro de Josué, em que Josué faz parar o Sol para estender o dia de uma batalha que os israelitas estavam vencendo. Mas também há afirmações semelhantes nos Salmos, no Eclesiastes e no primeiro livro das Crônicas.

Nascimento, no texto final, explica que Galileu recorreu a duas teorias em suas cartas, a “teoria da irrelevância” e a “teoria da acomodação”. A primeira consiste em demonstrar que as verdades científicas – e, no caso em questão, as verdades sobre os corpos celestes – não parecem ser algo necessário à salvação, pois, se o fossem, o autor sagrado teria tratado desses assuntos de forma muito mais extensa. O que importa para a salvação são as verdades sobre Deus e sobre o modo como devemos viver para seguir a Sua vontade, que virtudes cultivar e que pecados evitar. A segunda teoria se dirige ao modo de interpretar a Escritura nos temas ligados à natureza. Já que eles não são essenciais para a salvação, devemos partir da observação sensível para entender o que diz o autor sagrado, e não o contrário (nesse sentido, Galileu faz observações bem interessantes à grã-duquesa sobre a afirmação de que a Teologia seria a “rainha das ciências”). Que os cientistas se ocupem desses assuntos, pois Deus nos deu a razão para que a usemos, é o que diz o astrônomo.

Entre os interlocutores de Galileu, quem tinha mais preocupações com o fato de as novas descobertas enfraquecerem a inerrância da Bíblia era justamente a grã-duquesa Cristina. Por isso, especialmente na carta que escreveu a ela – que era mãe do grão-duque Cosme II, da Toscana, protetor de Galileu – o astrônomo tomou um grande cuidado em, antes de oferecer sua interpretação das passagens bíblicas sobre o movimento dos astros, embasar sua argumentação nos Padres da Igreja, especialmente Santo Agostinho. Galileu conhecia vários trechos da obra De Genesi ad litteram (“sobre a interpretação literal do Gênesis”) e os citou em profusão para defender que, em tudo aquilo que se referia às ciências naturais, era preciso partir primeiro da experiência sensível para depois chegar à interpretação correta da Bíblia, em vez de começar primeiro com uma interpretação da Escritura para se entender a natureza, porque isso poderia causar muitos problemas. Vejamos algumas dessas citações:

“Pelo momento, contentando-nos em observar uma piedosa reserva, nada devemos crer apressadamente sobre esse assunto obscuro [Agostinho se referia a algum tema relativo à natureza], no temor de que, por amor a nosso erro, rejeitemos o que a verdade, mais tarde, poderia nos revelar não ser contrário de modo nenhum aos livros do Antigo e do Novo Testamento.”

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“Se acontece que a autoridade das Sagradas Escrituras é posta em oposição com uma razão manifesta e certa, isto quer dizer que aquele que interpreta a Escritura não a compreende de maneira conveniente; não é o sentido da Escritura que ele não pode compreender, que se opõe à verdade, mas o sentido que ele quis lhe dar; o que se opõe à verdade não é o que se encontra na Escritura, mas o que se encontra nele mesmo [no intérprete] e que ele quis atribuir a esta [a Escritura].”

“Deve ser tido por indubitável o seguinte: o que quer que os sábios deste mundo puderem verdadeiramente demonstrar acerca da natureza das coisas, mostremos que não é contrário às nossas Escrituras”

“Se, sobre coisas obscuras e muito afastadas dos nossos olhos, lemos algo nos livros divinos que poderia, salva a fé de que estamos imbuídos, apresentar a uns um sentido e a outros um outro, guardemo-nos bem de nos pronunciar com tanta precipitação por um destes sentidos, no temos de que, se a verdade mais bem estudada o derrubar, nos derrubará com ele.”

“É muito vergonhoso, pernicioso e digno de se evitar ao máximo que um cristão fale destes assuntos [sobre temas da natureza, como assuntos de biologia e astronomia] como estando de acordo com Escrituras cristãs, pois ao ouvi-lo deliberar de tal modo que, como se diz, cometa erros tão absurdos, um infiel mal consegue segurar o riso. E o mal não está em que se zombe de um homem que comete erros, mas que os de fora acreditem que nossos autores afirmem tais coisas. E assim são criticados e rechaçados como ignorantes.”

Agostinho estava alertando, com 1,2 mil anos de antecedência, para equívocos que seriam cometidos na época de Galileu!

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Hoje sabemos que Galileu estava certo no que diz respeito ao movimento da Terra e do Sol (embora tivesse se enganado quanto às provas deste movimento), e também estava certo em sua argumentação sobre a interpretação da Bíblia em termos gerais. Mas o seu erro foi forçar uma reinterpretação de passagens bíblicas – e o próprio Galileu admite que estava fazendo isso, no fim de suas cartas a Dini e a Cristina. De certa forma, Galileu foi empurrado a isso, pois seus adversários, tendo poucos argumentos científicos para rebater o copernicanismo, recorreram à Escritura para tentar derrotá-lo. Galileu, que adorava uma disputa, acabou entrando em “território proibido”, e essa foi a origem de seus problemas. Por isso senti falta, nas observações feitas por Nascimento na introdução e na conclusão do livro, de uma explicação mais pormenorizada sobre as restrições colocadas pela Igreja à interpretação da Bíblia após o Concílio de Trento. Na Sessão VI desse concílio, decretou-se:

786. Ademais, para refrear as mentalidades petulantes, decreta que ninguém, fundado na perspicácia própria, em coisas de fé e costumes necessárias à estrutura da doutrina cristã, torcendo a seu talante a Sagrada Escritura, ouse interpretar a mesma Sagrada Escritura contra aquele sentido, que [sempre] manteve e mantém a Santa Madre Igreja, a quem compete julgar sobre o verdadeiro sentido e interpretação das Sagradas Escrituras, ou também [ouse interpretá-la] contra o unânime consenso dos Padres, ainda que as interpretações em tempo algum venham a ser publicadas.

Claro, Galileu julgou que o movimento dos astros não entrava na categoria de “coisas de fé e costumes necessárias à estrutura da doutrina cristã”, e por isso considerou-se livre para fazer sua própria interpretação. Mas os inquisidores não viram a coisa dessa maneira. E, como a polêmica de 1616 foi basicamente escriturística, e não científica, uma contextualização a respeito desse tema teria ajudado os leitores a entender a origem do primeiro processo de Galileu.

(aviso: alguns trechos desta resenha foram extraídos da coluna que o blogueiro publicará na edição de novembro da revista O Mensageiro de Santo Antônio)

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