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Nicolau Copérnico e a “fake history”

Um astrônomo revolucionário que só publicou sua teoria perto da morte, para que a Inquisição não o pegasse? Certamente não foi o caso de Nicolau Copérnico. (Imagem: Reprodução) (Foto: )

Quando uma boa lenda reforça uma certa narrativa que nos convém ideologicamente, danem-se os fatos, certo? Quer dizer, pra que fazer uma pesquisa histórica decente se basta repetir o que já virou senso comum? No caso da história da relação entre ciência e fé, isso é o que mais acontece, como mostramos diversas vezes aqui no blog. Felizmente, há quem se empenhe em desmascarar essa fake history, como é o caso de Tim O’Neill, autor do blog History for Atheists e ele mesmo um ateu. O’Neill publicou, dias atrás, um extenso post comentando a versão mais conhecida sobre a vida do polonês Nicolau Copérnico e a recepção à sua teoria heliocêntrica.

Para resumir bastante a lenda, Copérnico, que lecionava em Roma, precisou até se afastar do centro da Igreja Católica quando desenvolveu sua teoria, por medo da Inquisição, e a guardou para si e seu círculo de amigos mais próximos até perto da morte, quando enfim resolveu publicá-la, já que nem a Igreja, nem os protestantes (não menos hostis à ideia de que a Terra não é o centro do universo) conseguiriam mesmo puni-lo. Assim, Copérnico encarregou seu amigo Andreas Osiander de cuidar da publicação, mas o luterano Osiander acrescentou um prefácio “rebaixando” o heliocentrismo a uma hipótese matemática. Como não poderia deixar de ser, a lenda foi formulada dessa forma pela primeira vez por Andrew Dickson White, e continua repetida dessa forma até hoje, como mostra O’Neill.

O blogueiro recapitula a biografia e o “currículo” de Copérnico, com idas e vindas entre a Polônia e a Itália (nada de “dar aulas em Roma”; no máximo, ele teria dado algumas palestras sobre astronomia), explica a origem da insatisfação crescente que havia com o modelo astronômico geocêntrico de Ptolomeu e mostra, de forma breve, que o polonês desenvolvera um sistema que resolvia as inconsistências entre o modelo ptolemaico e as observações astronômicas, mas não deixou de lado, por exemplo, a noção de órbitas circulares (as órbitas elípticas só viriam com Kepler, décadas depois).

Aí a coisa começa a ficar interessante, pois O’Neill mostra que mesmo o modelo de Ptolomeu não era visto como “ciência experimental”, mas como um modelo matemático e que estaria sujeito a mudanças à medida que as observações ficassem mais precisas. Antes mesmo de Copérnico, outros estudiosos flertavam com modelos alternativos, incluindo alguns com uma Terra móvel, sem que sofressem perseguição alguma da Igreja Católica. E aqui voltamos ao tema do “medo” de Copérnico, de que a divulgação de suas ideias lhe trouxesse encrenca com a Inquisição. Segundo O’Neill, o polonês não se empenhou em esconder seu modelo; pelo contrário, em 1512 um resumo de seu modelo, escrito por ele mesmo, circulava pela Europa e chegou às mãos até mesmo de Erasmo de Roterdam.

Como se isso fosse pouco, em 1533 o papa Clemente VII pediu a seu secretário Johann Widmanstadt (ou Widmannstetter) que desse uma palestra sobre as ideias de Copérnico no Vaticano. A audiência incluiu não só o pontífice, mas vários outros membros da Cúria. O papa ficou entusiasmado com a teoria. Clemente VII morreu em 1534 e foi sucedido por Paulo III, que manteve Widmanstadt como secretário. No ano seguinte, o alemão passou a servir ao cardeal Nicolau von Schönberg – e foi Schönberg quem escreveu a Copérnico encorajando-o a publicar sua teoria.

Por que, então, ainda seriam necessários oito anos até De revolutionibus orbium coelestium ser publicado? O próprio Copérnico explicou a demora no prefácio dedicado a Paulo III: a divulgação de suas ideias em um círculo mais restrito era necessário para que a crítica fosse mais “técnica”; uma vez que o seu trabalho caísse “na boca do povo”, ele atrairia uma reação menos criteriosa e mais apaixonada, dado o seu caráter revolucionário. Além disso, Copérnico tinha consciência de que o seu modelo ainda não era 100% invulnerável, embora fosse bem melhor que o de Ptolomeu. De qualquer maneira, o texto deixa claro que não havia nenhum medo de reação religiosa ao heliocentrismo. Por fim, Copérnico aceitou a publicação quando um “resumo anônimo” de sua teoria, publicado em 1540 por Georg Rheticus, um discípulo luterano do astrônomo polonês, teve recepção positiva. Foi Rheticus quem levou o manuscrito a Nuremberg e o deixou com Andreas Osiander.

Foi Osiander quem teve a ideia do prefácio apresentando o heliocentrismo como uma hipótese matemática entre outras, e não como fato físico, como maneira de contornar objeções daqueles mais apegados à tradição aristotélica e que poderiam adotar uma postura de “não li e não gostei”. O’Neill diz que Osiander deixou clara essa sugestão em cartas a Copérnico e Rheticus. O detalhe ressaltado por O’Neill é que a preocupação não era com questionamentos baseados na Escritura, mas na tradição filosófica de Aristóteles, que era majoritariamente dominante na academia daquela época.

Com o De revolutionibus publicado e Copérnico morto, a reação religiosa ao heliocentrismo foi… bem pouca. O’Neill enfrenta a história da famosa citação em que Lutero critica veementemente a teoria; parece que a frase é autêntica, mas as circunstâncias (como a data da frase, quatro anos do livro de Copérnico e um ano antes do “resumo” de Rheticus) lançam dúvidas sobre o quanto Lutero realmente sabia (ou o quanto lhe haviam dito) sobre o modelo heliocêntrico. Outro reformador luterano, Melâncton, fez críticas mais fortes, embora não tenha deixado claro se a origem de sua rejeição era religiosa ou científica – e, ainda assim, incentivou o uso do modelo copernicano em instituições de ensino luteranas.

Da parte católica, o grande questionamento veio do frade dominicano florentino Giovanni Tolosani, um aristotélico (justamente o perfil que Osiander temia) que rejeitou a tese de Copérnico por violar tanto “a razão humana quanto a Sagrada Escritura”. Mas a crítica de Tolosani não foi muito longe. Os cálculos de Copérnico seriam, inclusive, a base do trabalho que resultou na adoção do calendário gregoriano, em 1582. Mesmo assim, O’Neill diz que o consenso sobre o trabalho do polonês era o de que se tratava de boa matemática, mas física pobre. Pouca gente aceitava o heliocentrismo como realidade física, mais que teoria matemática: nesse grupo estava Galileu, o que nos leva a uma outra história, já extensamente tratada aqui no Tubo. Mas o dado é interessante por mostrar que o copernicanismo levou muitas décadas para se estabelecer como uma descrição da realidade dos céus, e quando Galileu teve seus problemas com a Inquisição, o consenso científico e filosófico ainda pendia para o modelo aristotélico-ptolemaico.

Em resumo, nada de esconder ideias por medo de perseguição religiosa ou da Inquisição, para publicá-las apenas no leito de morte. Copérnico vinha discutindo seu modelo pelo menos 30 anos antes do De revolutionibus; ele era conhecido em Roma, até mesmo por papas; e a grande oposição inicial veio não de religiosos preocupados com as Escrituras, mas de estudiosos apegados à tradição aristotélica.

O post de O’Neill é parte de uma série sobre “grandes mitos”; certamente lerei os demais para ver o que vale a pena compartilhar com vocês.

Pequeno merchan

Além de editor e blogueiro na Gazeta do Povo, também sou colunista de ciência e fé na revista católica O Mensageiro de Santo Antônio desde 2010. A editora vinculada à revista lançou o livro Bíblia e Natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé, uma compilação que reúne boa parte das colunas escritas por mim e por meus colegas Alexandre Zabot, Daniel Marques e Luan Galani ao longo de seis anos, tratando de temas como evolução, história, bioética, física e astronomia. O livro está disponível na loja on-line do Mensageiro.

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