Eu tive algumas oportunidades de ver o papa João Paulo II. A primeira, em 1997, quando cobri sua visita ao Rio de Janeiro para a revista que fazíamos no curso de Jornalismo. Depois, em 1998, fui com amigos a Roma para a Semana Santa; em 2002, voltei a Roma, em outubro, para uma canonização. E também já visitei seu túmulo, no subsolo da Basílica de São Pedro, em março de 2006. Foi um pontífice extraordinário, e que também fez questão de deixar claro que ciência e fé podem andar juntas. É dele a declaração mais forte de um líder católico a respeito da compatibilidade entre a fé e a teoria da evolução, como bem sabemos.
Daqui a alguns dias o papa Francisco canonizará João Paulo II (e João XXIII, de quem também não podemos nos esquecer). Nove anos se passaram depois daquele “Santo Subito” na Praça de São Pedro, durante os funerais do papa polonês. Um passo intermediário rumo à canonização foi dado em maio de 2011, quando Bento XVI beatificou João Paulo II. O jornalista italiano Saverio Gaeta contou a história do milagre que abriu caminho para essa beatificação no livro O milagre do papa (editora Prumo, 2011, 103 páginas), que apresento hoje aos leitores do Tubo.
O livro é estruturado num crescendo. Primeiro, narra o impacto que a vida (e a morte) de João Paulo II teve sobre várias pessoas, de diversas nacionalidades, católicas e não católicas. Depois, passa a relatar algumas graças recebidas e atribuídas à intercessão do pontífice: uma gravidez complicada, um emprego conquistado… a seguir, narra brevemente alguns relatos que realmente poderiam ser considerados milagrosos: o caso de uma criança no Chile que sofria de enterocolite necrotizante e já tivera a maior parte do intestino retirado cirurgicamente, a ponto de só poder se alimentar por via introvenosa, mas que subitamente recuperou parte do órgão; curas repentinas de câncer e lesões vertebrais, um bebê que se manteve vivo no útero da mãe por semanas, apesar da perda do líquido amniótico, que depois voltou a se formar; enfim, casos extraordinários, mas nos quais os responsáveis pela causa de beatificação de João Paulo II não reuniram todos os elementos necessários para atestar o milagre e a intercessão do papa.
O caso da freira francesa Marie Simon Pierre, no entanto, foi diferente, cumprindo todos os requisitos para que fosse a cura que o Vaticano aceitou como milagrosa para a beatificação de João Paulo II. A religiosa sofria do Mal de Parkinson, diagnosticado em 2001, mas a doença e todos os seus sinais desapareceram subitamente em 2 de junho de 2005, dois meses depois do falecimento de João Paulo II. No dia seguinte, ela interrompeu o tratamento, e no dia 17 de junho seu neurologista atestou que não havia nenhum sinal da doença.
Gaeta narra brevemente a vida da religiosa, formada em Enfermagem e dedicada aos recém-nascidos do setor de Neonatologia de um hospital na França, desde a infância até o surgimento da doença, cujos primeiros sinais datavam de 1998, quando a freira tinha 37 anos. Ela atribuía os primeiros tremores ao cansaço e à sobrecarga de trabalho, mas seu estado foi se deteriorando, apesar do diagnóstico e do tratamento, que chegou a incluir 25 comprimidos diários.
Seis dias depois da morte de João Paulo II, duas freiras que viviam com a irmã Marie Simon compõem uma oração ao papa pedindo a cura da religiosa, e passam a rezá-la; a congregação inteira, depois, se juntará ao esforço. Mesmo assim, a doença progride a ponto de uma freira encontrar Marie Simon desmaiada sobre sua escrivaninha. Era o dia 1.º de junho. Na noite daquele dia e na madrugada do dia 2, a freira percebe que consegue escrever com caligrafia clara; ela se movimenta e consegue trabalhar sem esforço.
A investigação médica começou em março de 2006. Foram quatro anos até que os especialistas declarassem que se tratava de uma cura inexplicável. Foram analisadas todas as hipóteses, inclusive a de que Marie Simon não sofria de Parkinson (o raciocínio era: “o Parkinson é incurável; a freira ficou curada; portanto, não sofria de Parkinson, mas de alguma outra coisa”). O exame rigoroso não encontrou nada que indicasse que a doença da religiosa era algo diferente de Parkinson, e nenhuma hipótese científica explicou como, de um instante para o outro, a doença havia simplesmente desaparecido.
O milagre é uma dessas fronteiras entre a ciência e a religião, e suas características tornam difícil, às vezes, aceitar a hipótese de uma intervenção que supera as leis da natureza. Por isso é especialmente interessante a entrevista que Gaeta faz com o cardeal português José Saraiva Martins, que comandou a Congregação para as Causas dos Santos entre 1998 e 2008, e que fecha o livro. Boa parte dela é uma reflexão teológica sobre o que faz de alguém um santo, e uma explicação do processo que culmina com a canonização, mas o cardeal também oferece informações sobre o exame científico dos casos que chegam à Congregação, como a existência de juntas médicas formadas por especialistas; quando Saraiva Martins deu a entrevista, o Vaticano contava com 70 médicos, muitos dos quais professores universitários.
É mais para o fim da entrevista que surge o tema dos milagres do ponto de vista científico, com distinções interessantes: há os milagres que superam as forças da natureza pelo fato em si (fatos que a natureza não pode realizar); os milagres que superam as forças da natureza não pelo fato, mas pelo sujeito em quem se opera o fato (a ressurreição de um morto, por exemplo); e, por último, o que supera as forças da natureza não pelo fato, nem pelo sujeito, mas pelo modo como se opera (é o caso das curas instantâneas). De qualquer maneira, uma cura, para ser considerada milagrosa, precisa obedecer a certos requisitos: deve ser inexplicável à luz da ciência médica; e deve ser instantânea, completa e duradoura. Se falhar minimamente em algum desses aspectos, o caso é descartado. É isso que os cientistas convocados pelo Vaticano atestam; não são eles que declaram haver milagre. Essa tarefa é dos teólogos, que examinam o parecer dos médicos e analisam o aspecto sobrenatural do fato: se foi ou não milagroso, e se pode ser atribuído à intercessão de alguém junto a Deus.
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