Se me pedissem uma recomendação de um DVD que servisse de introdução ao tema da relação entre ciência e fé, mas que também já tratasse de alguns temas específicos, e que pudesse ser mostrado a uma audiência que não necessariamente tenha profundos conhecimentos científicos, eu diria, na hora, que o que há de melhor hoje nesse campo é o documentário Test of Faith.
O documentário é um projeto do Faraday Institute for Science and Religion, da Universidade de Cambridge, com produção executiva de Ruth Bancewicz e Denis Alexander, e recursos da Fundação John Templeton. Não sei de nenhum outro filme sobre ciência e religião que tenha reunido um elenco de pesos-pesados no tema, como John Polkinghorne, Alister McGrath, Peter Harrison, Jennifer Wiseman, Alasdair Coles, Ard Louis, Simon Conway Morris, Francis Collins, Katherine Blundell e vários outros, para falar do assunto.
O documentário é dividido em três partes bem definidas, cada uma com pouco menos de meia hora, e que, se for preciso, podem até ser assistidas separadamente sem prejudicar a compreensão. O primeiro segmento, “Além da razão?”, faz uma pequena introdução à relação entre ciência e fé, e entra no debate sobre a necessidade de um criador. Peter Harrison mostra como a ciência moderna se beneficiou das convicções teológicas cristãs sobre o fato de o mundo ser racional, ordenado e inteligível, e como Thomas Huxley usou a estratégia da cunha de modo que o clero, que até então tinha participação ativa nas descobertas científicas, fosse praticamente excluído delas a partir do fim do século 19, justamente a época em que o paradigma do conflito entre ciência e fé se fortalece. Polkinghorne lembra que a ciência e a religião têm o mesmo objetivo, que é o conhecimento da verdade, e que precisamos de ambas para compreender o mundo.
A partir daí, o debate se volta para uma questão: o que sabemos sobre o universo, graças à ciência, exige um criador? Polkinghorne cita o ateu Fred Hoyle, que afirmou que “o universo foi tramado”, para introduzir o tema do princípio antrópico; e logo em seguida o documentário também menciona as teorias de multiverso, que para alguns seriam tentativas de enfraquecer a noção de que há algo por trás do ajuste fino do universo que permite o surgimento da vida como a conhecemos (já que nosso universo seria apenas um entre vários, cada um com diferentes parâmetros e leis). Mas os entrevistados são unânimes em dizer que, ainda que exista um multiverso, ele não abala em nada a crença em um Deus criador. É Polkinghorne que diz que, embora seja impossível provar o multiverso, não podemos limitar a criatividade divina. E mesmo o multiverso não responderia à pergunta crucial: “por que há algo e não o nada?” (Test of Faith foi feito antes dos livros de Stephen Hawking e Lawrence Krauss, então não trata das suas alegações sobre o universo surgido do “nada”. No entanto, quem lê o blog pode imaginar como os entrevistados responderiam a Hawking e Krauss). A mensagem final do segmento é a de que tanto a ciência precisa admitir suas limitações, quanto a fé precisa ser coerente com o que sabemos graças à ciência.
O segundo segmento, “Um acidente em desenvolvimento?”, já entra na questão específica da controvérsia entre criação e evolução. Criacionistas e defensores do Design Inteligente dão sua opinião (William Dembski e um representante da organização Answers in Genesis estão entre os entrevistados), mas o documentário faz uma defesa sólida da teoria da evolução. Simon Conway Morris chama de “grande violência à ciência” o uso do Gênesis como relato científico (Katherine Blundell fala ainda em “abuso da Escritura”), e David Wilkinson lembra que o criacionismo de Terra jovem é um fenômeno bem recente, e que já no início do Cristianismo pensadores como Santo Agostinho já entendiam as metáforas do relato da criação.
Mas defender a evolução contra o criacionismo e o DI é apenas uma frente do combate; a outra é mostrar que a evolução é plenamente compatível com a crença em um Deus criador, o que é ressaltado por todos os entrevistados por meio do chamado “evolucionismo teísta”. O que se segue é um debate sobre a existência de um propósito no processo evolutivo; é aí que entra Simon Conway Morris com a “convergência evolutiva”, a noção de que a evolução só tem como caminhar em algumas direções possíveis. Os minutos finais da parte 2 tratam de uma questão espinhosa: a do sofrimento. Como um Deus amoroso permite a destruição e o desperdício exigidos pelos processos evolutivos? Polkinghorne e Collins afirmam que, em um mundo absolutamente livre de coisas como o câncer, terremotos ou tsunamis, a evolução nem seria possível e que, portanto, elas são uma espécie de “mal necessário”. Mas isso é de um ponto de vista puramente científico. A questão metafísica do sofrimento vai além, e seguirá atormentando filósofos, teólogos e clérigos por algum tempo.
A parte final, “Há alguém aí?”, trata daquilo que o próprio documentário apresenta como um dos maiores desafios que a ciência apresenta à fé: como as descobertas recentes da neurociência e da genética afetam a noção de livre arbítrio, e a própria experiência religiosa. Afinal, somos livres ou determinados pelos nossos genes e neurônios? Os entrevistados veem o determinismo como uma posição reducionista, e dão diversos exemplos: mostram que somos capazes de modificar nossos cérebros (usando o exemplo de taxistas ingleses, sobre os quais há estudos muito interessantes); citam o fenômeno da emergência, ao falar da mente, dizendo que emergiu algo que é maior que o cérebro; desmentem a tese do “gene egoísta” ao mostrar que nosso raciocínio moral vai muito além do altruísmo observado em animais. Collins, por exemplo, questiona: por que admiramos um Oskar Schindler? Ele se arriscou para salvar gente que não conhecia, que não era de seu grupo social, ou seja, do ponto de vista do “gene egoísta”, ele não ganharia absolutamente nada fazendo o que fez… o fato de haver quem faça algo assim e que nós o admiremos por isso mostra que a liberdade, a transcendência, a moralidade, nos levam para muito além do nosso DNA.
Um aspecto interessante do documentário é que ele foge da tentação de buscar “provas científicas” para a existência de Deus. Os entrevistados fazem questão de ressaltar que o princípio antrópico ou a convergência evolutiva não são provas de que Deus existe, mas são coerentes com a hipótese de um criador (é o que diz McGrath sobre o princípio antrópico) e indicam um mundo ordenado. Que há uma orientação clara no documentário é evidente: ele defende a conciliação entre ciência e fé. Mas, para fazê-lo, não avança o sinal em nenhum momento.
O Test of Faith foi tão bem sucedido que acabou dando origem a toda uma série de, digamos, produtos. Há o livro com relatos pessoais da jornada de fé de vários cientistas, e material para um curso em grupos de estudo, com um guia de estudo e outro guia especial para os líderes que conduzirem as reuniões do curso. Aliás, a própria Ruth Bancewicz me disse, por e-mail, que não existe nenhuma restrição à exibição pública do DVD; é bem o contrário: quanto mais pessoas puderem assistir ao filme, melhor!
E agora, no Brasil!
Até pouco tempo atrás, brasileiros interessados no Test of Faith precisariam comprar tanto o DVD quanto o material impresso no site do Instituto Faraday. A edição internacional do DVD, inclusive, já vem com legendas em português do Brasil. Mas a editora Ultimato resolveu facilitar a nossa vida, e agora existem edições nacionais do DVD e do livro, com o título O teste da fé. Voltaremos em breve a falar dessa ótima iniciativa.
Aviso: O Faraday Institute, mencionado nessa resenha, concedeu em 2011 uma bolsa para que o blogueiro fizesse um curso de uma semana na Universidade de Cambridge.
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