Enquanto as queimadas estão engolindo a Amazônia e o Pantanal, estamos nos encaminhando para o encerramento do “Tempo da Criação”, um período de conscientização ambiental que várias igrejas cristãs celebram entre 1.º de setembro, Dia Mundial de Oração pela Criação, e 4 de outubro, festa de São Francisco de Assis. E, caso você tenha se flagrado pensando que esse negócio de preservação ambiental é “papo de esquerdista”, lamento informar que você se deixou convencer por uma lorota. A esquerda se apropriou do discurso sobre o meio ambiente, mas ele nem de longe é ou deveria ser exclusividade da esquerda. Para comprovar, está aí Roger Scruton com seu Filosofia verde, caso você queira uma perspectiva conservadora mais secular; mas, se você for cristão, a minha recomendação é Nossa vida sagrada: como o cristianismo pode nos salvar da crise ambiental, de Norman Wirzba.
Esqueça o IPCC, esqueça a discussão sobre “mudanças climáticas”, e apenas olhe em volta. Goste você ou não do termo “Antropoceno”, a verdade é que o ser humano tem transformado o mundo radicalmente. Veja os rios transformados em esgoto a céu aberto (que o digam os atletas do triatlo e da maratona aquática em Paris), os lixões, as obsolescências programadas que nos fazem comprar o mesmo produto com frequência, as tragédias causadas por solos impermeabilizados que não escoam a água, ou pelas encostas que deslizam porque não há vegetação que as segure. As tecnologias de transporte tornaram muito mais fácil a uma comunidade sugar todas as riquezas de uma área e, depois que ela foi devidamente devastada, simplesmente levantar acampamento e ir embora, buscar outro local para explorar. Não tem como acharmos que isso é normal, que é assim mesmo, que é inevitável. A questão é: por que o ser humano age assim? Isso é reversível?
Já houve quem culpasse o cristianismo. Ficou famosa a tese de Lynn White, professor da Ucla, para quem o cristianismo colocava o ser humano como o dominador da Terra, e a natureza como seu serviçal. Além disso, como a concepção judaico-cristã da história é linear, e não cíclica como a de outras religiões, isso incentivava um descuido maior em relação ao meio ambiente. É verdade que em certos círculos há uma boa dose de “no longo prazo estaremos todos arrebatados”, como descreveu Guilherme de Carvalho em uma de suas colunas na Gazeta para descrever uma indiferença de cristãos em relação a questões ambientais, mas White estava errado. Nós chegamos a esse ponto de degradação não por excesso de cristianismo, mas por falta dele, como demonstra Wirzba. Uma época de enorme progresso científico e tecnológico, iniciada com a Revolução Industrial, coincidiu (bem, talvez não seja mera coincidência) com a ascensão de filosofias de autossuficiência humana e aperfeiçoamento perpétuo (daí o apelo atual do transumanismo) que legitimam o individualismo e justificam o uso de tudo e de todos para a satisfação dos próprios interesses.
Nós chegamos a esse ponto de degradação ambiental não por excesso de cristianismo, mas por falta dele
O subtítulo do livro é “como o cristianismo pode nos salvar da crise ambiental”, porque a visão cristã propõe algo bem diferente dessa utopia do poder ilimitado sobre a natureza. A mensagem do cristianismo é a da “santidade dos lugares, dos seres humanos e das outras criaturas” (p. 23), de que nossa “condição de criatura afirma que a vida é uma dádiva a ser recebida com gratidão, respeitada humildemente e com a qual nos envolvemos com responsabilidade” (p. 51). E, para comprovar isso, Wirzba se apoia amplamente na Escritura: não só na clássica passagem em que Deus, após criar o homem, o coloca no jardim “para cultivar o solo e o guardar” (Gn 2,15), ou no “Deus viu que isso era bom” que encerra cada dia da criação em Gênesis 1, mas também em outros trechos que indicam “um mundo no qual as criaturas e os ambientes estão em constante comunicação entre si e com Deus, na qualidade de seu Criador e Sustentador” (p. 128).
Reconhecer que a vida é sagrada, para remeter ao título do livro, não significa adotar nenhum tipo de panteísmo ou colocar todas as criaturas no mesmo nível. Só o homem é “quase igual aos anjos”, coroado “de glória e honra” (Sl 8) – mas é daí que deriva sua grande responsabilidade, como diria o Tio Ben. O mundo não é “uma enorme zona de extração” ou “um armazém abastecido com recursos naturais” (p. 19) que podemos sugar à vontade como um jogador de Minecraft; é obra saída das mãos de Deus, que a amou desde o princípio, riqueza que Ele deu ao homem para que administrasse com cuidado, como na parábola dos talentos. Quem se acha no direito de dispor de tudo e de todos como bem entende não é administrador, é tirano.
O drama do mundo moderno, como diz Clive Hamilton, citado por Wirzba, é que as pessoas “precisam encontrar maneiras de viver na Terra de forma que não a destruam, mas não têm as ferramentas éticas necessárias para a tarefa” porque as tradições religiosas “perderam sua autoridade persuasiva ou foram amplamente desacreditadas” (p. 181). O cristianismo tem essas ferramentas, mas elas exigem uma mudança radical da nossa parte, a começar pela humildade de reconhecer que, longe de sermos autossuficientes e onipotentes, somos criaturas e temos de levar uma “vida enraizada” em um “mundo entrelaçado” (títulos de dois capítulos do livro), em que tudo está interligado como em uma malha, e reconhecer nossa dívida para com a natureza, com o solo do qual viemos – metaforicamente e literalmente, já que também somos “poeira das estrelas”, como diria Carl Sagan. Temos de voltar ao relato da criação e aprender de uma vez por todas que “o mundo é um reino ordenado, e não caótico; essa ordem reflete o desejo divino de que as criaturas floresçam; este mundo é uma realidade dinâmica e aberta que nutre e acolhe a novidade da vida; os lugares, processos e criaturas deste mundo são afirmados pelo seu Criador como fundamentalmente bons” (p. 183), compreender que “cada criatura (...) é o amor de Deus que se torna visível, tátil, auditivo, aromático e nutritivo” (p. 206).
E então, o que fazemos? Wirzba não dá orientações práticas. No capítulo final, “Chamados à criatividade”, ele nos convida a redescobrir a missão de “cultivar e guardar” o jardim que nos foi dado por Deus, deixando-nos informar por todos esses princípios que já elencamos. Isso significa, em primeiro lugar, redescobrir o verdadeiro sentido do trabalho humano: “ampliar ainda mais a bondade e a beleza da vida, participando das maneiras divinas de criar, sustentar e nutrir o mundo” (p. 268). “O cultivo [aqui entendido não só como a atividade diretamente ligada ao solo ou à natureza] é um trabalho paradigmático e primordial, porque nele as pessoas chegam a uma compreensão corporificada de que vivem de dádivas incompreensíveis em sua profundidade e sagradas em sua origem”, diz Wirzba (p. 256). O trabalho, afirma ele, é “uma atividade qualificada mediante a qual as pessoas orientam seus talentos e interesses para a construção e manutenção de uma vida compartilhada”, e “o melhor trabalho é aquele que se dispõe e ajuda os semelhantes na realização de seu potencial dado por Deus” (p. 270). Ciente disso, cada um de nós encontrará sua maneira peculiar de colocar todos esses princípios em prática de acordo com as circunstâncias em que vive.
O mundo não é “uma enorme zona de extração” ou “um armazém abastecido com recursos naturais” que podemos sugar à vontade; é obra saída das mãos de Deus, que a amou desde o princípio
O livro termina com cinco recomendações: recuperar uma sensibilidade pactual (em oposição a uma visão contratual das relações); advogar por economias transparentes; revigorar os processos democráticos; construir uma infraestrutura de apoio à vida; e cuidar da vida interior (ou seja, cultivar as virtudes). É aqui que o leitor se pega perguntando o que isso tem a ver com a preservação ambiental, e é aqui que está uma das grandes sacadas do livro: não é apenas a relação do ser humano com a natureza que está quebrada, mas as relações entre os seres humanos também estão, e pelos mesmos motivos. Se todos passarem a entender a história por trás de cada objeto, por exemplo, “compreenderão melhor a vulnerabilidade e a interdependência das criaturas, pois perceberão como uma coisa depende sempre de tantas outras coisas ao mesmo tempo” (p. 288). Se reorientarmos o mundo do trabalho para ter em vista o bem das pessoas em primeiro lugar, a natureza também será respeitada. Esta é a grande diferença entre a proposta de Wirzba e uma vertente bocó do ambientalismo que trata a humanidade em si mesma como um problema, como quando um David Attenborough diz que os humanos são “uma praga sobre a Terra”. Fico com as palavras do papa Francisco, que na Laudato Si’ afirma que “não pode ser autêntico um sentimento de união íntima com os outros seres da natureza, se ao mesmo tempo não houver no coração ternura, compaixão e preocupação pelos seres humanos” (91) e que “não se pode prescindir da humanidade. Não haverá uma nova relação com a natureza, sem um ser humano novo” (118).
Nossa vida sagrada é um livro importante e desafiador. Ele nos pede não apenas que repensemos a maneira como enxergamos a natureza, mas também que tenhamos um novo olhar sobre políticas econômicas, hábitos de consumo, o mundo do trabalho e outras realidades humanas. Pode soar às vezes um pouco “progressista”, mas a crítica que ele faz ao liberalismo não se diferencia muito daquela feita pela Doutrina Social da Igreja, e além disso Wirzba me parece muito mais um comunitarista (a esse respeito, recomendo o clássico Justiça, de Michael Sandel) que um esquerdista. Ele não deturpa o cristianismo ou trechos bíblicos como fazem os ditos “cristãos progressistas” para mostrar como podemos recuperar este mundo; pelo contrário, evidencia como a mensagem de harmonia da criação é importante desde os tempos dos hebreus, passando pelos Padres da Igreja e chegando aos nossos tempos.
Falando em cristianismo e meio ambiente...
... este colunista estará em Belo Horizonte no feriadão da Proclamação da República para participar da quarta Conferência Nacional da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência. Participarei do painel “O que fazemos com o nosso planeta?”, ao lado de Rodrigo Bibo, Marcelo Cabral, Tiago Pereira e Carlos Henrique. Ainda dá tempo de fazer sua inscrição, com desconto para associados da ABC2.
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