Até onde eu sei, graças a Deus nem eu nem ninguém aqui em casa pegou Covid-19; se chegamos a pegar, estivemos entre os assintomáticos. E não tenho nenhuma pretensão de ter opinião sobre “tratamento precoce”, ivermectina, hidroxicloroquina, antivirais, o que for. Conheço médicos que defendem e prescrevem, e outros que desaconselham. Se eu me descobrisse contaminado, buscaria os profissionais da minha confiança e seguiria a orientação deles, sem querer me meter em área que não é a minha.
Essa breve introdução pessoal serve para deixar claro o meu espanto com uma nota da Regional Sul 2 da CNBB, que compreende o estado do Paraná, sobre o “tratamento precoce”. Datado de quinta-feira, dia 25, o documento é assinado por dom Geremias Steinmetz, arcebispo de Londrina; dom José Antônio Peruzzo, arcebispo de Curitiba; dom Amilton Manoel da Silva, bispo de Guarapuava; e pelo padre Valdecir Badzinski – respectivamente, presidente, vice, secretário e secretário-executivo da Regional.
Após falar de “impasses” a respeito do tema, e de afirmar que os resultados das pesquisas “não foram satisfatórios o suficiente para que o Comitê Extraordinário de Monitoramento da Covid-19, a Sociedade Brasileira de Infectologia, a Associação Médica Brasileira, a Sociedade de Especialistas, entre outros, recomendassem, de forma unívoca, o tratamento precoce”, os bispos dizem que, “tendo em vista estas divergências e contradições (...) afirmamos que o ‘tratamento precoce’ não é opção e orientação da Igreja Católica no Regional Sul 2 da CNBB”. Oi?
Até agora, a nota não aparece em nenhum canal oficial, como site ou perfil de mídias sociais, nem da Regional Sul 2, nem das dioceses que a integram; no entanto, a assessoria de imprensa da Regional Sul 2 confirmou que a nota é verdadeira, mas que era “de regulamento interno, para orientação das lideranças da Igreja, e por isso não está nos canais de comunicação do Regional”. De qualquer maneira, já se tornou público porque está viralizando (para se ter uma ideia, soube por um sacerdote de fora do Paraná...), então me permito o comentário.
Até mesmo entre os médicos há divergências, o que a nota reconhece, e o presidente do Conselho Federal de Medicina (uma entidade bastante relevante, mas ignorada pela nota dos bispos) defende a autonomia dos médicos para receitar o que eles considerarem melhor, mas os bispos, aparentemente, já bateram o martelo sobre o que é bom e o que não é para combater a Covid. Sinceramente, não era melhor deixar o tema para os profissionais do ramo, em vez de jogar o peso da Igreja em algo que ainda é controverso e que não diz respeito aos assuntos nos quais os bispos podem exercer sua autoridade?
Lembro que, na sua posse como presidente do Supremo, Luiz Fux reclamou que os políticos viviam levando ao STF assuntos que são problema do Congresso. Mas isso só acontece porque o próprio Supremo resolve dar corda pra esse tipo de demanda. Da mesma forma, sempre critiquei quem, seja por ignorância, seja por medo de exercer sua liberdade, espera que a Igreja tenha opinião sobre absolutamente tudo, de tatuagem e hobbies até candidatos presidenciais. Mas como é que eu vou reclamar desse pessoal quando os bispos realmente estão dispostos a se pronunciar sobre tudo, de reforma da Previdência a pedágio? E ainda por cima o fazem de forma institucional, confundindo ainda mais os incautos, levados a crer que essa é “a visão da Igreja” sobre o assunto. Não faço coro com os laicínicos que gostariam de ver os padres e bispos calados e trancados dentro dos templos; que a Igreja precisa estar presente no debate público é evidente, mas não é todo tipo de assunto que demanda o parecer da hierarquia católica.
Uma coisa é a orientação dos bispos sobre as vacinas que usam linhagens celulares oriundas de fetos abortados, porque este é um tema que envolve uma avaliação moral e uma prática que a Igreja sempre condenou. Outra coisa é bispos tomarem para si a prerrogativa de fazer avaliações que competem aos médicos, em matéria exclusivamente médica. Outro dia chamei um parecer da Associação de Médicos Católicos de São Paulo sobre as vacinas de “desserviço”. Pois essa nota da Regional Sul 2 merece a mesma descrição.
Que a Igreja precisa estar presente no debate público é evidente, mas não é todo tipo de assunto que demanda o parecer da hierarquia católica
Esta será a segunda Páscoa que muitos católicos, no Brasil todo, viverão sem acesso aos sacramentos, ou pelo menos a alguns deles, seja por ordem de algum governante, seja por decisão do próprio bispo local. Isso apesar de praticamente todas as paróquias e igrejas católicas de que tive notícia terem seguido perfeitamente os protocolos de higiene e distanciamento, o que torna ainda mais iníqua a intromissão do poder temporal sobre a atividade religiosa, e ainda mais inexplicável a atitude de bispos que aceitaram sem questionamentos essa intromissão, quando tantas outras atividades que juntam muito mais pessoas estão liberadas.
Um ano de pandemia mostrou que há uma série de medidas que podem ser tomadas para não privar os católicos da missa – celebrações com maior frequência, para dispersar os fiéis; missas ao ar livre, ou mesmo como um drive-in, com as pessoas dentro de seus carros – e de outros sacramentos, especialmente a confissão. Uma secretária de Saúde pode achar que dá na mesma rezar em casa ou estar na missa; um bispo sabe que não é assim. E é a saúde espiritual desse rebanho sem alimento que deveria receber a atenção prioritária dos pastores, em vez de perderem tempo em intromissões no que pacientes e médicos católicos estão tomando ou receitando para vencer a Covid-19.
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