Ouça este conteúdo
A catolicosfera está em polvorosa com um certo “novo estudo” atestando que o Sudário de Turim é da época de Jesus Cristo. Na imprensa secular (ou seja, não religiosa), saiu pelo menos no Independent e no Daily Mail britânicos, na Newsweek e no New York Post, assim em uma brevíssima pesquisa on-line. Entre as publicações católicas, está ao menos no The Tablet e em alguns perfis de mídias sociais, como o da Crisis Magazine. No Brasil, saiu no Antagonista e em jornais como O Dia. Acontece que o tal “novo estudo” não é tão novo assim.
O Tubo de Ensaio procurou o Centro Internacional de Estudos do Sudário (Ciss, na sigla em italiano), em Turim, que atestou não haver nenhuma pesquisa nova a respeito de datações do Sudário. Os detalhes todos narrados na imprensa são de um estudo publicado em 2022 – de fato, boa parte das reportagens menciona um artigo na revista acadêmica Heritage, que data justamente de dois anos atrás, e desde então não surgiu nada novo a esse respeito. A julgar pela data das publicações das reportagens recentes, foi o Daily Mail que iniciou o frenesi atual; a matéria de Stacy Liberatore até menciona a Heritage, mas em nenhum momento diz que o artigo é de 2022. Se descobriu esse estudo apenas agora, ou se resolveu reciclá-lo por algum motivo qualquer (e nem estamos na Semana Santa, quando o interesse no Sudário dispara), é um mistério.
Ao menos o que as reportagens afirmam, mesmo omitindo a data real da publicação do estudo, é verdadeiro: os pesquisadores usaram uma técnica de datação envolvendo raios-X e concluíram que o pano tem cerca de 2 mil anos. Mas esse estudo tem limitações sérias, segundo o próprio Centro Internacional de Estudos do Sudário, que manifestou suas objeções em um comunicado breve, que o Tubo de Ensaio publicou em primeira mão em maio de 2022. Em resumo, o Ciss alega que o problema não é a técnica, chamada WAXS, mas o objeto: o Sudário passou por tanta manipulação e contaminação – foi tocado, beijado, exposto em ambientes com velas, pegou fogo, foi encharcado e remendado – que a essa altura ele se tornou praticamente imprestável para qualquer técnica de datação, independentemente do resultado que dê.
Pesquisa afirma que pano é da época de Cristo, mas sindonologistas dizem que vários eventos da história do Sudário tornaram-no um objeto nada confiável para datações
Eu realmente acredito que o Sudário de Turim é aquele mesmíssimo pano que envolveu o corpo de Cristo – e a palavra certa é “acredito”, pois não me parece que a ciência possa emitir conclusões sobre esse fato. No máximo, os cientistas poderão nos descrever o pano nos seus mínimos detalhes, analisar as manchas, atestar que não se sabe como a imagem foi formada ou, se houver uma explicação, dizer se o processo que gerou a imagem ocorre naturalmente ou se precisa ser provocado de alguma outra forma. E poderão até trabalhar com estatísticas, como fizeram Bruno Barberis e Massino Boccaletti, para quem as chances de o Homem do Sudário não ser Jesus Cristo, dado tudo o que se sabe sobre o pano, são ínfimas, perto de zero. Mas dizer que “a ciência comprova que o Sudário é o tecido usado no sepultamento de Cristo”, isso não vai rolar.
Imagens feitas com inteligência artificial, sim, são novas
A maioria das publicações em mídias sociais que mencionam o tal “novo estudo” também traz uma imagem feita por inteligência artificial a partir das características do Sudário. Isso, sim, é novidade. E não existe apenas uma, mas duas imagens. A que está circulando por aí foi feita pelo jornal britânico Express com o Midjourney (a mesma ferramenta usada em algumas ilustrações do Tubo de Ensaio, aliás); a outra foi produzida por outro software, chamado Merlin, a pedido do Daily Mail. Comparando ambas, é facilmente compreensível que a do Express seja a mais divulgada, porque é muito mais “natural” que a do Mail.
VEJA TAMBÉM:
Nada contra essas tentativas, que aliás apenas trazem a inteligência artificial para um jogo que já vem sendo jogado há muito mais tempo, o das “reconstruções da face de Jesus”. Mas confesso que, de todas as imagens de Cristo relacionadas de alguma forma ao Sudário, a que mais me move ainda é a mais direta de todas: a fotografia feita por Secondo Pia em 1898.
Um estudo realmente novo de que poucos estão falando
Se é difícil entender por que o Daily Mail resolveu pegar um estudo de 2022 e descrevê-lo como “novo”, ao menos um mérito se há de conceder ao jornal britânico, que provavelmente foi o primeiro grande veículo de imprensa a divulgar uma outra pesquisa, esta sim bem recente: o artigo de Giulio Fanti no Archives of Hematology Case Reports and Reviews analisando as manchas de sangue no Sudário e concluindo que elas são consistentes com as torturas sofridas por Jesus. Quanto a esta pesquisa, ainda vou lê-la com calma – já surgiram algumas contestações – e buscar a análise dos especialistas do Ciss.