Criação e evolução são um tema quente de debate. A universidade poderia ganhar com isso, mas a discussão foi podada no nascedouro.| Foto:

Uma amiga me mostra reportagem da IstoÉ desta semana sobre o cancelamento de um evento criacionista na Unicamp. O evento em questão era o 1º Fórum de Filosofia e Ciência das Origens, que estava marcado para o dia 17 e foi cancelado quase em cima da hora. Havia até palestrante estrangeiro, com passagem comprada e tudo. O cancelamento ocorreu por pressão de professores da universidade. “Que façam isso numa igreja”, disse à IstoÉ um dos líderes do protesto, o físico Leandro Tessler. Situação complicada, não?

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Os leitores do blog sabem que não tenho a menor simpatia pelo criacionismo, mas é preciso fazer algumas ponderações. Como católico, acredito que todos os espaços são campos de apostolado, inclusive a universidade, mas suponho que a frase de Tessler deixe subentendido que a universidade não é lugar de pregação religiosa. Mas é lugar de debate científico e, vendo a lista de palestrantes, à exceção do jornalista Michelson Borges, os demais são cientistas: um físico, um químico, um arqueólogo e um geólogo. Então, não me parece um “evento religioso”. “Claramente conscientes de que a Unicamp se trata de uma instituição secular, nós, os palestrantes daquele que seria o 1º Fórum de Filosofia e Ciência das Origens, tínhamos a convicção de que deveríamos, cada um em sua respectiva palestra e área, tratar do tema sob uma perspectiva científico-filosófica. Nenhum de nós iria ao campus falar de religião, Bíblia nem mesmo criacionismo”, escreveu Borges em seu site (vale a pena ler também as observações de Marcos Eberlin, que é defensor do Design Inteligente).

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Um outro fator foi levantado pela Unicamp como argumento para cancelar o evento: “faltavam integrantes que pudessem debater o tema sob todos os pontos de vista”, dizia a nota da universidade, segundo a IstoÉ. Vá lá, mas quando a universidade aprovou o evento já não sabia disso? Efetivamente, o fórum não estava configurado como um debate (debate pressupõe ter especialistas com visões opostas, e não havia nenhum evolucionista na programação; outro dia li a respeito de um “debate sobre a inconstitucionalidade do Estatuto do Nascituro” na UFPR, mas todos os palestrantes tinham a mesma posição e não havia ninguém pra defender o Estatuto. Que raio de “debate” é esse?), e é complicado saber se haveria algum espaço para o contraditório. Vamos supor que Tessler e outros resolvessem participar do evento e questionar as informações dos palestrantes na sessão de perguntas e respostas; como a organização lidaria com isso? Ou haveria alguma possibilidade posterior para que os argumentos apresentados pelos criacionistas no evento pudessem ser contestados?

Da maneira como tudo foi feito, cortou-se uma possibilidade de discussão que teria sido muito interessante. É certo que não havia outras possibilidades? Não seria possível aproveitar a presença dos convidados do fórum para realizar um debate com outros acadêmicos evolucionistas da própria Unicamp? Entendo que Tessler e outros não estejam dispostos a debater argumentos religiosos, mas, se, como disse Borges, os palestrantes trariam argumentos científicos, que mal haveria em debater?

Tudo isso nos leva a um cenário mais amplo. No workshop sobre ciência e religião do qual participei em Oxford no mês passado, vários pesquisadores apontaram que existe, no meio acadêmico, uma hostilidade contra qualquer coisa que remeta à religião. A IstoÉ fala em “grupo de ateus”, mas o próprio Tessler diz, em seu blog, que não existe nada desse tipo (aliás, a matéria não diz absolutamente nada sobre a crença, ou falta dela, de Tessler e dos professores que pediram à Unicamp o cancelamento do evento). De qualquer modo, o episódio me faz lembrar de outros dois casos. O primeiro é a revolta contra uma visita do papa Bento XVI à universidade La Sapienza, em 2008. Os protestos foram tão intensos que o Vaticano achou melhor cancelar o discurso do pontífice (o discurso que ele faria foi publicado pelo Vaticano), reconhecido por católicos e não católicos como um dos grandes intelectuais do nosso tempo. O segundo episódio teve muito menos publicidade. O VI Congresso Latino-Americano de Ciência e Religião, em 2011, com a Universidade de Oxford como correalizadora, deveria ter ocorrido na Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), a maior do país. No entanto, também houve revolta entre professores da instituição até que a Unam anunciou que estava pulando fora, citando inclusive ameaças de agressão física contra os participantes e organizadores do evento. Por mais que o México tenha um histórico complicado de laicismo exacerbado (que já degringolou até para guerra civil, no início do século passado), convenhamos, isso não é atitude digna de acadêmicos (na verdade, não é digna de ninguém). Felizmente, outra universidade, a Panamericana, se ofereceu para receber o congresso, do qual tive a oportunidade de participar. Situações como essas e o episódio da Unicamp só reforçam a observação feita no mês passado, na Inglaterra.

Aviso: O blogueiro viajou a Oxford para o workshop “Ciência e Religião na América Latina: Desafios e Oportunidades” a convite da Fundação John Templeton e da Universidade de Oxford.

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