No meu primeiro ano na Gazeta do Povo, 2004, fui enviado para acompanhar uma excursão de devotos ao santuário nacional de Nossa Senhora Aparecida, num dia 12 de outubro. Eu já conhecia a cidade, pois meu pai é de lá, mas fazia muitos anos que não visitava a basílica, que tem uma “sala de milagres” enorme, com cópias em cera de órgãos humanos, fotografias, instrumentos de trabalho, todos deixados em agradecimento. Antes de viajar, no entanto, conversei com teólogos sobre o valor das peregrinações e um deles me disse, sobre Aparecida, que naquela “sala de milagres” não havia nada efetivamente reconhecido pela Igreja como tal, e que os verdadeiros milagres se davam no andar de baixo, onde funcionam os confessionários.
Essa conversa me veio à mente quando li este artigo do American Spectator sobre o chefe do departamento médico do santuário francês de Nossa Senhora de Lourdes, famoso pela gruta onde Nossa Senhora apareceu a santa Bernadette Soubirous e cuja água, acredita-se, tem poderes milagrosos. O doutor Alessandro Franciscis é formado em Harvard e tem aquele ceticismo saudável quando o assunto é cura milagrosa.
Ele explica que o rigor científico é a regra em Lourdes. Se alguma pessoa alega ter sido curada, é examinada imediatamente por um comitê liderado por Franciscis e que inclui médicos que estejam visitando Lourdes na ocasião (independentemente da crença). Depois disso, a pessoa é submetida a uma bateria de exames e entrevistas, e precisa apresentar seu histórico médico. O processo é tão exigente e cansativo que muita gente escolhe não se submeter a ele, conta o médico. Ele ainda acrescenta que não cabe a ele o julgamento sobre haver milagre ou não. Como cientista, ele se limita a declarar que certa cura não tem explicação médica. A partir daí, é com o bispo do local onde reside a pessoa curada; cabe a ele declarar a ocorrência do milagre.
E o rigor é revelado em números: nos últimos 40 anos, apenas cinco curas milagrosas foram reconhecidas (Franciscis diz que nem todo bispo atesta o caráter milagroso de uma cura considerada inexplicável pelos médicos). A lista completa das curas milagrosas está aqui, e o último caso foi reconhecido em 2005, encerrando um processo que levou 53 anos, já que a italiana Anna Santaniello foi curada em 1952.
Classifiquei a atitude do médico como “ceticismo saudável” porque certos fenômenos religiosos são mesmo propícios para o deslumbramento. Coisas do tipo “Nossa Senhora da Vidraça” podem e devem ser investigadas pela ciência, assim como alegações de curas milagrosas. Jogar nas costas de Deus aquilo que a natureza pode fazer é, para mim, prejudicial no longo prazo. Também acho interessante ver a prudência e a humildade com que tanto as autoridades médicas quanto religiosas tratam o assunto. Os médicos têm a humildade de reconhecer que não há explicação para tudo; os religiosos têm a prudência de não alardear tudo como milagre. Isso fortalece a credibilidade do trabalho feito em Lourdes.
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