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O cientista e o contemplativo

Um dos melhores filmes que vi no ano passado (não que tenha visto muitos) foi Homens e Deuses, a história de um grupo de monges trapistas sequestrados e mortos na Argélia, em 1996, pelo Grupo Islâmico Armado.

Os trapistas estão instalados no Paraná, aqui pertinho de Curitiba: o mosteiro de Nossa Senhora do Novo Mundo está em Campo do Tenente (vejam esta ótima reportagem do Yuri Al’Hanati), e já tive a felicidade de estar lá algumas vezes. Em uma destas ocasiões conheci o irmão Gabriel, que nos contou sua experiência como estudante universitário de Química no estado de São Paulo antes de se tornar monge trapista. Pedi a ele que escrevesse um artigo com sua visão pessoal sobre a relação entre ciência e fé. Confiram o que ele preparou para os leitores do Tubo:

Per speculum in aenigmate: uma visão da fé e da razão

Ir. Gabriel, OCSO

Hoje em dia fala-se muito sobre as relações existentes entre a fé e a razão, entre aquilo que cremos (e que muitos definem como “assunto de foro íntimo”) e aquilo com o qual convivemos cotidianamente, de uma forma “visível” (e que costumamos legar ao domínio das diversas “ciências”). Desde o advento do Iluminismo, ambas vêm sido confrontadas, quase como forças inimigas entre si, que só podem se relacionar num contexto de hostilidade e de obrigatória tensão. Mas será que isto é verdade?

Em primeiro lugar, é importante notar que tanto a fé quanto a ciência se ocupam do mesmíssimo objeto: o conhecimento da verdade. Durante séculos, a busca dos homens pela verdade unia fé e ciência numa amálgama, onde era impossível separar totalmente uma da outra. A ciência era investigada pelos sacerdotes no templo e nenhum “cientista” (segundo a acepção pré-iluminista do termo) ousava levantar qualquer questionamento sem levar a fé em consideração, simplesmente porque, para os antigos, a verdade era una. Tanto as coisas facilmente explicáveis como aquelas imersas no mistério insondável deviam provir de um único e mesmo Deus, que era o Deus das pequenas e das grandes coisas, do mundo visível e também do invisível.

A fé, porém, se ocupa da verdade revelada, enquanto a ciência se ocupa da verdade empírica, verificável. É interessante notarmos que esta diferença de compreensão da verdade remonta à Antiguidade. Para os gregos, verdade é aletheia, que significa literalmente “não escondido”, isto é, revelado. Para os latinos, porém, verdade é veritas, cuja raiz provém do verbo vereor, que significa (entre outras coisas) “verificar”. Vemos, assim, que o homem moderno torna explícita uma intuição que já o acompanhava havia muito tempo.

Isto significa que a fé não é uma realidade totalmente subjetiva, de “foro íntimo”, como dissemos acima, mas que ela se reporta a uma verdade recebida, que ela não pode alterar, mas somente interpretar e explicitar o seu conteúdo. Para nós, cristãos, a fé está inteiramente ligada ao conhecimento e à interpretação da Bíblia, da qual ela não pode se afastar, se deseja manter sua coerência e sua veracidade, sua qualidade de estar referida à verdade. A ciência também trabalha com uma verdade revelada, no sentido de patente, de não oculta. O cientista investiga os mistérios da natureza que lhe saltam aos olhos e muitas vezes o faz não isento de certo olhar religioso. Augusto Ruschi, por exemplo, decidiu dedicar sua vida toda à Biologia ainda criança, ao se maravilhar diante das flores e plantas que seu pai cultivava no quintal de casa. E Louis Pasteur costumava passar horas, quando era criança, na farmácia de seu vilarejo, vendo, fascinado, o farmacêutico local manipulando as substâncias e transformando-as em remédios. Já os filósofos gregos associavam a ciência (gnosis) com o maravilhamento (tháumasis), de cuja raiz provêm as palavras gregas para “Deus” (théos) e para “contemplação” (theoría). Quem conhece a verdade se admira, e é remetido a princípios e a questões sempre mais elevadas.

Hugo Harada/Gazeta do Povo
Os monges trapistas vivem uma vida de silêncio, contemplação e estudo.

Quando entrei na faculdade de Química, 15 anos atrás, jamais imaginaria que um dia ingressaria em um mosteiro de vida estritamente contemplativa. Simplesmente, esta era uma possibilidade totalmente fora do meu parâmetro de “possibilidades possíveis”. Cresci em um contexto laicizado e afastado da Igreja, no qual a fé me parecia algo absurdo, diametralmente oposto à clareza e precisão da Santa Madre Ciência. Sem querer fazer uma apologia pro vita mea, gostaria de refletir sobre alguns pontos centrais, comuns a todo homem de boa vontade.

A fé é “vivível”: uma das primeiras coisas que me marcou, no meu contato com a fé, foi perceber que ela não é uma realidade teórica, abstrata, mas concreta e encarnada. É o próprio são Tiago quem vai dizer na sua carta que “a fé sem as obras é morta”. É própria da fé uma expressividade, e – por que não? – uma visibilidade que ultrapassa, em muito, o enunciado teórico da fé. Jesus vai dizer no Evangelho: “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no reino dos céus, mas sim quem faz a minha vontade”. A fé possui um dinamismo potencial; lembro-me, logo após haver começado os estudos na faculdade, de vir a conhecer pessoas que levavam uma profunda vida espiritual. Não somente elas se diziam cristãs, como também eram coerentes (até onde eu podia ver, pelo menos) com aquilo que professavam.

A fé, em sua essência mesma, também é “vivível” por existir dentro do mesmo contexto no qual a ciência se encontra, o das coisas concretas e visíveis. Ademais, ela só pode adquirir o seu sentido e se apropriar de sua essência dentro de um âmbito vivencial. Vemos isto com muita clareza em toda a história do povo de Israel. Em quase toda página do Antigo Testamento vemos como a fé do povo eleito vai sendo moldada, trabalhada e adquire forma através das experiências do dia a dia, nas quais Deus nunca deixa de colocar a Sua mão, deixando a marca de Sua presença, de Sua intervenção. Para o israelita, a realidade é dialogada, é constituída de um intercâmbio contínuo entre a história dos homens e o Deus desta história. E isto não era privilégio exclusivo dos povos do passado. Aquilo que são Tiago, volto a recordar, vai dizer na sua epístola – “a fé sem obras é morta” – também possui um peso muito grande nos dias de hoje. Dizem que Gandhi só não se converteu ao cristianismo porque nunca encontrou, entre os cristãos londrinos com os quais convivia, alguém que vivesse da fé que professava. Isto mostra que o princípio básico continua ativo e válido.

Em segundo lugar, podemos e devemos viver da nossa fé. Aquilo no qual cremos deve influenciar os nossos atos, nossa conduta diária. Não simplesmente por um dever moral, porque queremos ser considerados “bonzinhos” ou dar bom exemplo no meio de um mundo mau e corrompido. Isto tem seu valor, mas há ainda mais. O homem possui uma sede do infinito que só pode ser saciada na medida em que ele empenha todas as suas energias – visíveis e invisíveis – na busca da Verdade, do Amor, enfim, de tudo aquilo que o comprometa consigo mesmo e com os demais. E, ainda mais importante, todos nós vivemos da fé, em maior ou menor grau, de modo mais ou menos explícito, pois todos os nossos atos refletem disposições nas quais cremos profundamente, mesmo quando o conteúdo desta fé não é essencialmente religioso.

Certamente, não estou fazendo apologia deste tipo de fé não religiosa, mas, pelo contrário, estou chamando a atenção ao fato de que todo tipo de fé remete a algo daquilo que Jesus legou aos seus discípulos durante toda a sua vida e que chega até nós através da sucessão apostólica. Os Padres da Igreja chamam isto de “sementes do verbo” (lógoi spermatikói), emprestando um termo familiar aos estoicos. Segundo este raciocínio, tudo aquilo que há de bom, nobre e verdadeiro no mundo provém do Deus vivo, autor do universo. E isto abrange todos os nossos bons atos, mesmo quando não estamos seguros daquilo no qual cremos de fato e que se encontra na raiz destes mesmos atos.

Praticamos a fé mais do que temos conhecimento. Pode parecer paradoxal, mas é verdade. Pude experimentar isto em minha própria vida e também já testemunhei isto na vida de muitos outros. Os padres da Escolástica, na Idade Média, ensinavam que todo ato nasce de uma intenção. Isto implica que nossas ações dão forma àquilo que cremos no mais íntimo de nossos corações.

Em terceiro lugar, devemos ter em mente que a fé também é uma ciência. Esta frase pode (deve) ser entendida em diversos sentidos: a fé também pode ser objeto de um aprofundado estudo científico. Desde os primórdios da Igreja, jamais faltaram pessoas desejosas de perscrutar mais a fundo as palavras da revelação e de as interpretar inclusive segundo critérios empíricos. Isto ganhou uma forma sistemática na Idade Média, com a chegada da Escolástica, que fazia uso da filosofia clássica para estudar a Sagrada Escritura e os dogmas da Revelação. E, com o passar dos séculos, esta vertente só tem crescido, com o surgimento do método histórico-crítico no século 18 e com a inclusão de ciências tão díspares como Arqueologia e Astronomia no estudo bíblico atual. Assim, a fé não se retrai, envergonhada, diante da razão, mas permite ser contemplada a fim de vir a ser melhor compreendida.

Aliás, este estudo da fé é de fundamental importância, pois estabelece uma relação entre o crente e a sua crença em um nível que lhe é imediatamente acessível – o da razão. Neste caso, a razão atua como pontífice, isto é, faz o papel de ponte, de elo de ligação, de vínculo de comunhão e se vê claramente como entre ambas deve existir uma parceria, uma sociedade. E esta nunca alimenta única e exclusivamente o nosso intelecto, mas sempre penetra para regiões mais profundas do nosso ser, alimentando e robustecendo, esclarecendo e explicitando aquela fé que já se encontra arraigada em nós.

Também ressalto que a fé não diz respeito somente às realidades espirituais reveladas, “abstratas”. A fé também está implicada na realidade cotidiana. Primeiramente, porque é impossível ao homem dissociar totalmente seu mundo interior (seus pensamentos, sentimentos e inclusive sua vida de fé) do mundo exterior no qual está inserido. O cientista que pesquisa o aumento da concentração de dióxido de enxofre na atmosfera não está preocupado somente com toda a imensa gama de possíveis reações, mas com suas implicações concretas na vida dos seus irmãos humanos, na produtividade dos campos afetados pela chuva acidificada por este dióxido, no desequilíbrio dos ecossistemas desencadeado por esta substância e até no impacto que o dióxido pode ter sobre os preços do feijão e do morango. Está tudo entrelaçado. Quanto mais quando estamos tratando de questões tão elevadas como aquelas com as quais a fé se ocupa – a existência de Deus, a presença do mal no mundo, a natureza do amor. Estas perguntas não podem ser meras questões de “foro íntimo”, mas reclamam implicações sociais, pedem uma “reflexão encarnada” na vida daquele que afirma crer. Não é à toa que se diz que “a fé remove montanhas”. A fé tem o poder de alterar as ações humanas e, portanto, de alterar inclusive o ambiente no qual estas pessoas se encontram.

E por fim, a ciência também pode ser objeto de fé. É muito comum as pessoas acharem que só as coisas invisíveis, espirituais, mais ou menos “abstratas”, possam ser objeto de fé. Mas isto não é verdade. Se assim fosse, jamais pensaríamos em Deus ao contemplarmos um pôr do sol ou uma gota de orvalho pendente de uma folha. Trata-se de realidades tão banais, tão cotidianas, mas que nos “prendem” e que nos remetem a algo de infinitamente superior e mais precioso, sem sabermos explicar o porquê. Por que João ama Clara? Por que Artur decidiu ser padre? Porque sorrimos ao vermos um avô brincando com seu neto? Certamente não é porque liberamos substâncias químicas ao sermos submetidos a determinados estímulos (pois o amor humano geralmente resiste à ausência eventual destas substâncias), mas porque compreendemos que por trás de cada pequena coisa criada existe um grande mistério, que se revela na medida em que nos entregamos a ele, na medida em que o desejamos contemplar.

A ciência também pode ser objeto de fé ao vermos nela não somente um mero resultado do contínuo crescimento do conhecimento humano, uma sofisticação solipsicista, autocentrada, quase um deus ex machina, mas como um elemento a mais que nos auxilia a compreender, a respeitar e até a amar o universo no qual vivemos, as pessoas com as quais convivemos, aquilo que somos. A ciência é capaz de conferir à fé uma forma mais acessível, mais visível, e que pode contribuir em muito para nossa vida espiritual. Podemos, assim, fazer nossas as frases atribuídas a santo Anselmo de Cantuária: Credo ut intellegam e Intellego ut credam.

Vemos, então, que a ciência não é um fim, mas apenas uma etapa no decorrer de um processo maior, que abarca a integridade de nossas vidas, em suas percepções, sentimentos, intuições. E assim vamos percebendo, pouco a pouco, que o verdadeiro objeto da ciência é o amor, que o homem procura respostas para melhor amar porque no fim das contas, aquilo que são Paulo disse no século 1.º continua sendo válido dois milênios depois: “as profecias desaparecerão, as línguas cessarão, a ciência desaparecerá. Atualmente permanecem estas três coisas: a fé, a esperança, a caridade. Mas a maior delas é a caridade.”

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