Não preciso explicar em detalhes para vocês o experimento da turma do Craig Venter, que criou DNA sintético e o fez funcionar dentro da “carcaça” de uma bactéria de espécie diferente, feito que realmente é um dos mais geniais da ciência recente. Quem não viu nos jornais viu na televisão, e quem não viu na televisão viu na internet.
Ainda no calor causado pela divulgação da notícia, parece que temos três equívocos ganhando força. O primeiro deles é o de exagerar o feito. Acho que ainda não chegamos à “vida sintética”, ou mesmo à “célula sintética”. De sintético ali temos o DNA (o que já é bastante); o resto da célula é natural. O segundo equivoco é fazer pouco da experiência, já que no fim das contas o DNA sintético seria apenas cópia de um outro já existente na natureza. Afinal, demonstrar que você pode fazer um genoma todo em laboratório, colocá-lo numa célula e fazê-la funcionar é simplesmente sensacional. O que eu recomendo a vocês é a leitura desse breve artigo de Lenise Garcia, publicado na edição de hoje da Gazeta do Povo. Ela não cai em nenhum dos dois extremos.
Já o terceiro equívoco está no campo da religião: concluir que o homem, mais uma vez, está “eliminando Deus” ou tornando-O irrelevante graças à ciência. Para dizer algo assim é preciso estar andando rápido demais com o andor. Afinal, a própria equipe de Venter afirmou que não está “criando vida do zero”. Como explicou a Lenise no artigo, o homem vem “manipulando” seres vivos há séculos, criando desde novas cores de plantas até novas raças de animais. Claro que o experimento de Venter leva a coisa a um nível inédito, porque abre a possibilidade de, no futuro, o ser humano criar em laboratório genomas que não existem atualmente na natureza.
É nesse contexto que precisamos ver algumas das afirmações feitas hoje por líderes religiosos. Até agora, o noticiário repercutiu especialmente as declarações dos católicos, a maioria delas girando em torno do bom ou mau uso da nova tecnologia. Quanto a isso, não temos o que tirar nem pôr. Acho que crentes e ateus concordam que algo assim pode servir para maravilhas e para desastres. “Quem não gostaria de uma bactéria que despoluísse o mundo?”, disse o teólogo e bioeticista Mario Sanches, da PUCPR, em conversa com o blogueiro. Mas e se, em vez de comer poluente, uma suposta bactéria inventada pelo homem comece a devorar, sei lá, água? Não surpreende que até agora as maiores preocupações a respeito do DNA sintético tenham sido levantadas pelos ambientalistas, e não pelos religiosos.
Mas o bom ou mau uso da tecnologia está na cabeça de quem usa. Trata-se de uma questão moral. Já a “relevância” ou “irrelevância” de Deus com o experimento é outro papo. Tenho visto afirmações como a do especialista em bioética Arthur Caplan, da Universidade da Pensilvânia, na revista Nature e citado pelo portal G1: “A descoberta de Venter parece extinguir o argumento de que a vida requer uma força ou poder especial para existir”, afirmou. Por outro lado, temos um bispo italiano, Domenico Mogavero, dizendo que “os cientistas nunca devem se esquecer de que só existe um criador: Deus” (pelo menos é a frase que chegou até o público). E aí, como ficamos?
Fato é que, para os crentes, Deus é o criador por excelência. A frase do bispo Mogavero deve ser entendida dentro do contexto católico para não criarmos falsas polarizações: Deus é o criador, mas divide esse trabalho com o homem (neste sábado, confiram o artigo de Mario Sanches na página 4 do jornal; ele explica esse conceito de “co-criação”) e, acho que podemos dizer, com a própria natureza, pelos processos que já conhecemos. Se eu acreditasse em um Deus que cria individualmente cada espécie, certamente estaria de cabelo em pé com a pesquisa de Venter. Na hora em que surgisse o primeiro ser vivo com genoma “inventado” (leia-se “não copiado da natureza”) em laboratório, esse Deus se tornaria obsoleto. Mas, convenhamos, a ciência já nos mostra que para o surgimento de novas espécies, seja por seleção natural ou por manipulação humana, não é mesmo preciso haver intervenções divinas diretas. O Deus em que acredito (e, comigo, a maioria dos cristãos) deixa o universo se desenvolver, como já disseram tantas pessoas que passaram pelo Tubo, e dá inteligência ao homem para cuidar e participar da criação.
Já a frase de Caplan me remete ao comentário de um amigo, leitor do blog. Para ele, o novo front da apologética seria a discussão sobre o surgimento da vida, que poderia, então, vir de fatores materiais, sem um “sopro” exógeno à matéria. Essa, sim, é uma discussão bem mais interessante, mas arrisco dizer: o DNA sintético não surge sozinho, precisa pelo menos da inteligência humana. Não poderia ser ela este “sopro” exógeno? E, se entendermos a inteligência humana como dom de Deus…
Um PS: o mesmo amigo me mostrou um artigo publicado hoje no Estadão. Nele, o biólogo Fernando Reinach diz, a certa altura: “com essa tecnologia, o homem poderá criar novos seres vivos, algo semelhante ao descrito no Gênesis.” Não é curioso que, quando é interessante, todo mundo passa a ler o Gênesis literalmente?
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