Você certamente já ouviu exortações do tipo “Faça o que a sua consciência lhe mandar”, “Siga a sua consciência”, “Não abafe o que sua consciência está lhe dizendo” – talvez até já tenha dado ou ouvido esses conselhos. Tudo muito bonito… até você ouvir um facínora, um assaltante, um assassino, um político corrupto ou simplesmente alguém que lhe traiu ou passou a perna dizendo que “está em paz com sua consciência”. Não é?
Como lembrou a teóloga Tracey Rowland em artigo publicado neste fim de semana na Gazeta do Povo, a consciência foi um dos temas de que Joseph Ratzinger, o papa emérito Bento XVI, se ocupou em sua obra. Neste domingo de Páscoa, em que esse gigante intelectual completa 90 anos de vida, escrevo sobre On Conscience, um livrinho seu – e “livrinho”, aqui, se refere não ao conteúdo, claro, mas ao tamanho mesmo: são apenas 82 páginas, e até o formato é menor que o habitual. A obra reúne dois ensaios do então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, escritos para workshops do Centro Nacional Católico de Bioética norte-americano, um em 1984 e outro em 1991. O público-alvo são bispos participantes desses eventos.
O livro inverte a ordem dos ensaios, trazendo primeiro o de 1991, em que Ratzinger se debruça mais especificamente sobre o tema da consciência, e depois o de 1984, que trata das missões de bispos e teólogos. Mas em ambos os textos um dos temas centrais é o afrouxamento das consciências, até o ponto da negação total da verdade objetiva, do bem e do mal. E aí é que está o problema, pois, afirma Ratzinger, a consciência obriga. É errado agir contra a própria consciência. Mas há consciências bem formadas e consciências mal formadas, e não trabalhar para formar bem a consciência é, sim, culpável – se não fosse, todo tipo de barbaridade estaria justificada com base no “eu segui a minha consciência” e, no fim das contas, a melhor coisa do mundo seria ficar na ignorância sobre o certo e o errado, pois a vida ficaria muito mais fácil.
Esse amortecimento deriva da própria perda da noção correta do que é a consciência. Ratzinger explica o que ela não é: não é uma concha protetora em que o homem se esconde da realidade; não é uma faculdade que dispensa a verdade; não é uma ferramenta de autojustificação; não é a deificação da subjetividade; não é um oráculo, nem o superego, nem a internalização de vontades de terceiros. Pelo contrário: de acordo com o cardeal, a consciência é “uma janela aberta para fora, para ver a verdade comum que nos sustenta”, é um “caminho para a estrada redentora da verdade”, é a “memória original do bem e do mal”, uma tendência inata ao divino ou, como escreveu São Paulo aos romanos (2,15), é “a Lei inscrita nos corações”. É o apelo interno da verdade, inseparável da noção de responsabilidade diante de Deus; é um órgão que requer treinamento e prática para crescer, assim como fazemos com a linguagem, em uma analogia que Ratzinger empresta de Robert Spaemann. O problema é que essa consciência acusa: o sentimento de culpa é um alarme que ela faz soar dentro de nós. E nós odiamos isso. Não é à toa que este é um tema clássico da literatura: Ratzinger cita as Fúrias que perseguem Orestes, na peça de Ésquilo (para o cardeal, elas também são uma manifestação da consciência, reprovando-o pelo matricídio cometido), mas para mim uma das melhores representações deste tema está em Crime e Castigo, de Dostoievski.
A sociedade moderna faz o que pode para calar essa voz, e o faz tão bem a ponto de nem percebermos o tamanho do buraco em que nos enfiamos assim. Um dos truques usados para amortecer a consciência é, ironicamente, exaltá-la (na sua versão errônea, claro) a ponto de conceder-lhe uma certa “infalibilidade”, contrapondo-a à autoridade moral. Por isso Ratzinger se dedica a explicar uma frase do cardeal John Henry Newman muito citada e pouco compreendida. Em uma carta ao Duque de Norfolk, Newman disse que brindaria “primeiro à consciência, depois ao papa”, como se houvesse contraposição entre ambos, quando na verdade não se pode entender essa afirmação sem lembrar que a vida de Newman foi uma busca incessante pela verdade, e é assim que se forma a consciência, com a ajuda, sim, da autoridade – no caso, do Magistério da Igreja. Ratzinger cita Newman e São Thomas More como exemplos de pessoas que colocaram a verdade acima da tolerância, do sucesso, da aprovação alheia ou do bem-estar. More perdeu a cabeça (literalmente) por ela; Newman não chegou a tanto, mas perdeu quase tudo quando trocou o anglicanismo pelo catolicismo, quando sua consciência lhe mostrou que submeter-se à autoridade do papa era a coisa certa a fazer.
E onde entra a ciência nisso? Lembremo-nos que os dois textos de Ratzinger destinam-se a eventos de bioética, um dos campos onde costuma haver choques sérios quando grupos religiosos se opõem a certas práticas científicas. E o cardeal afirma que, quando tiramos da jogada a verdade como formadora de consciências, sobram apenas a técnica e o poder. Vale a “consciência” de quem pode mais, vale o might makes right, em que a justificação moral deriva da possibilidade técnica. Como lembra John Haas, presidente do Centro Nacional Católico de Bioética que escreveu a introdução do livro, essa ideia está intimamente ligada à da “ditadura do relativismo” que Ratzinger denunciou na missa de abertura do conclave do qual sairia como pontífice. A única régua moral do certo ou errado passa a ser a utilidade de certa prática, como ela leva ao “progresso”, quando na verdade a única condição para o progresso, agora sem aspas, é a renovação moral da sociedade. E isso só virá com consciências bem formadas.
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