Giordano Bruno é retratado em "Cosmos" como um sujeito doce que só queria convencer o mundo de que o universo era bem maior do que se imaginava, e foi queimado por isso. A realidade, no entanto, é bem diferente. (Imagem: Divulgação/NatGeo/Fox)| Foto:
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Assisti ontem à estreia brasileira da versão repaginada de Cosmos, a série que fez um sucesso estrondoso nos anos 80, apresentada por Carl Sagan, e que ganhou um remake com a apresentação de um pupilo seu, Neil DeGrasse Tyson. Eu me lembro muito vagamente de a Globo ter exibido a série original, mas não lembro se cheguei a assistir alguma coisa naquela época. Visualmente, o novo programa é um espetáculo, graças a recursos que não existiam na época de Sagan. A série também parece ter sido “atualizada” (tenho a impressão de que as teorias de multiverso eram inexistentes ou pelo menos irrelevantes quando da série original). Em resumo, gostei muito e farei o possível para assistir aos novos episódios, que se não me engano irão ao ar sempre às quintas-feiras, às 22h30, no canal NatGeo (a estreia de ontem foi apresentada simultaneamente em diversos outros canais, como quase todos os da Fox).

Mas houve um sério escorregão no episódio de ontem. Um escorregão que consumiu quase um quarto do programa, e a essa altura o leitor do Tubo que viu Cosmos ontem já está imaginando que vou falar do segmento animado sobre Giordano Bruno. A própria escolha de Bruno como o personagem histórico que anima o episódio de estreia já é bem questionável, afinal o próprio Tyson diz, após a animação, que ele não era um cientista, mas um cara que “adivinhou certo”. Se é assim, por que não usaram um cientista de verdade? Copérnico, Galileu, Kepler, Brahe… todos meio contemporâneos de Bruno e muito mais relevantes para a ciência. Dei uma pesquisada e parece que na série original de Carl Sagan a figura histórica que ilustrava o primeiro episódio não era Bruno, mas Hipácia de Alexandria.

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A história de Bruno, no entanto, é tentadora demais para deixar de fora de um negócio desses… o problema é que o Bruno da realidade pouco corresponde ao da lenda que agora tem versão animada. Aliás, falando em animação, um de seus trechos é inspirado numa edição de De Rerum Natura. Ouvimos, no programa, que Bruno tinha uma queda por livros proibidos, e o vemos retirando uma tábua do chão para pegar a obra de Lucrécio. Ele é descoberto enquanto lê e posto para fora do que parece ser uma casa dos dominicanos. O problema é que De Rerum Natura aparentemente nunca esteve no Index de livros proibidos da Inquisição. Aliás, a obra toda decorada que Bruno lê, e de onde saem os anjinhos que explicam a teoria do universo infinito, é uma edição de 1483 feita para… um papa, no caso Sixto IV. Mas antes fosse esse o principal problema.

O que ficamos sabendo de Giordano Bruno por meio do desenho animado é que ele saiu pregando a teoria heliocêntrica, acrescida da noção de que a Terra era apenas um de infinitos mundos (agora não lembro se o programa mencionava que esses mundos, segundo Bruno, também eram habitados por seres inteligentes), e por isso se encrencou muito, mas muito mesmo, não só com a Igreja Católica, mas também com as recém-criadas comunidades protestantes. O programa ainda descreve Bruno como um pioneiro dessa noção de “mundos infinitos”, omitindo que, antes dele, Nicolau de Cusa tinha tratado do tema — e passado ileso pela Inquisição. Vemos Bruno ser preso e mantido nos cárceres da Inquisição por oito anos. E, enfim, ele é condenado. Só então ouvimos o inquisidor, com aquela cara de mau em oposição ao cândido Bruno, condená-lo por uma série de acusações que são as verdadeiras: negar a doutrina católica sobre a natureza de Cristo (que, para Bruno, não era o Filho de Deus, mas um mágico muito bom), a Santíssima Trindade, a Eucaristia, a virgindade de Maria, o destino eterno das almas… sim, a condenação também mencionava a tese dos infinitos mundos, mas bem longe das razões principais que levaram Bruno à fogueira. Aliás, como explica Jole Shackelford, da Universidade de Minnesota, em seu ensaio sobre Bruno no livro Galileo goes to jail (que os produtores de Cosmos pelo jeito não leram), os inquisidores pareciam mais preocupados com a ideia de esses mundos serem habitados que pela noção propriamente dita de um universo infinito com muitos planetas.

Mas a essa altura já é tarde. O espectador passa a animação inteira vendo Bruno arrumar problemas por sua visão de um universo infinito com planetas infinitos; não é a breve leitura da sentença que vai apagar da cabeça da audiência a noção de causa e efeito entre “ideias de Bruno sobre Astronomia” e “condenação de Bruno pela Inquisição”. E quem não conhecia a história acaba sendo exposto à lenda de um Giordano Bruno mártir da ciência, quando a verdade estava bem distante.

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