Ontem o papa Francisco falou à Pontifícia Academia de Ciências, e inaugurou um busto do papa emérito Bento XVI. Seu discurso já está pipocando na imprensa aqui e ali, mas, sinceramente, prefiro apenas dar o link da íntegra de sua fala, pois infelizmente os sites e jornais cobrem muito mal o tema, como pudemos ver na recente Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos, então o risco de imprecisões é grande (no momento em que escrevo esse post, por exemplo, a reportagem da Folha de S.Paulo sobre a fala do papa tem um erro grosso ao colocar um “humanos” onde o papa fala apenas de “todos os seres”).
Dois temas têm chamado a atenção. Um deles é a maneira como Francisco se referiu à teoria da evolução:
Quando lemos no Gênesis a narração da Criação, corremos o risco de imaginar que Deus foi um mago, com uma varinha mágica capaz de fazer tudo. Mas não é assim! Ele criou os seres e deixou que se desenvolvessem segundo as leis internas que Ele mesmo inscreveu em cada um, para que progredissem e chegassem à própria plenitude. E deu a autonomia aos seres do universo, assegurando ao mesmo tempo a sua presença contínua, dando o ser a todas as realidades. E assim a criação foi em frente por séculos e milênios, até se tornar aquela que hoje conhecemos, precisamente porque Deus não é um demiurgo nem um mago, mas o Criador que dá a existência a todos os seres. (…) A evolução na natureza não se opõe à noção de Criação, porque a evolução pressupõe a criação dos seres que evoluem.
O papa não cita Darwin nominalmente em nenhum momento do discurso, mas, sinceramente, nem é necessário. A noção dos processos evolutivos está plenamente contida na descrição. E, com essa última frase, Francisco “resgata” a evolução da militância ateísta, lembrando um fato básico: a evolução explica como chegamos à variedade da vida que observamos hoje, mas não explica, e nem pretende explicar, como surgiu a vida, ou por que existe algo e não o nada, no fim das contas. Uma paulada naqueles que usam a evolução para justificar o ateísmo, enquanto se reforça a noção cristã de um Deus que sustenta a criação com Sua vontade, em vez de simplesmente dar um pontapé inicial e se retirar do gramado para simplesmente assistir ao jogo.
Mais adiante, o papa falará especificamente do ser humano:
Ao contrário, no que se refere ao homem, nele há uma mudança e uma novidade. Quando, no sexto dia da narração do Gênesis, chega a criação do homem, Deus confere ao ser humano outra autonomia, uma autonomia diferente daquela da natureza, que é a liberdade. E diz ao homem que dê um nome a todas as criaturas e progrida ao longo da história. Torna-o responsável da criação, também para que domine a Criação e a desenvolva, e assim até ao fim dos tempos.
Como sabemos desde o início do pontificado, o tema do cuidado pelo meio ambiente é muito caro ao papa Francisco.
E, entre esses dois trechos, ainda houve uma citação – aí, sim, explícita – ao Big Bang.
O início do mundo não é obra do caos, que deve a sua origem a outrem, mas deriva diretamente de um Princípio supremo que cria por amor. O Big Bang, que hoje se põe na origem do mundo, não contradiz a intervenção criadora divina, mas exige-a.
Pois é. Justamente essa última frase é que me deixou com a pulga atrás da orelha. Não só a mim, mas a outros amigos que leram o discurso e entendem um pouco do assunto. Afinal, o Big Bang é o início deste universo, mas não necessariamente é o momento em que, do nada, surgiu o ser (este, sim, o momento que exige um criador). Isso me lembra o episódio envolvendo o papa Pio XII, que já contei aqui em outra ocasião. Podemos dar o benefício da dúvida ao pontífice e imaginar que Francisco usou esse “exige” pensando realmente na necessidade de um criador para que o universo surja do nada. Mas a associação desse momento ao Big Bang é que pode causar alguma perplexidade.
Agora, convenhamos, nada disso é novidade, e quem tratar esse discurso do papa Francisco como mais uma “revolução” na Igreja, que “agora aceita a evolução e o Big Bang”, não passa de um grande picareta. Afinal, como estamos cansados de saber, um dos pioneiros do Big Bang foi inclusive um padre: Georges Lemaître, jesuíta como Francisco. E, quanto à evolução, nunca houve condenação formal. Pelo contrário: Pio XII, na Humani Generis, disse não haver incompatibilidade com o Catolicismo, e tanto São João Paulo II quanto Bento XVI (especialmente quando ainda era cardeal) fizeram referências favoráveis à evolução, especialmente no famoso discurso de 1996.
Mesmo não sendo novidade, é ótimo ver um papa, ainda mais alguém tão querido e popular quanto Francisco, reforçando essa compatibilidade entre ciência e fé. Isso pode desarmar aqueles católicos que ainda têm restrições de cunho religioso, especialmente no que diz respeito à evolução.
(Atualizado em 31/10, às 12h30: o link do discurso, que originalmente remetia à versão em italiano, agora direciona para a tradução oficial do Vaticano em português. Por isso, os trechos em itálico também foram alterados; antes eram uma tradução minha, agora são a versão oficial em nosso idioma)
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