Calisto III de santo não tinha nada, abrindo caminho para a dinastia dos Bórgia. Mas excomungar cometa, isso ele não fez.| Foto: Reprodução

A cada 76 anos, o mais famoso dos cometas, o Halley, passa perto de nós. Os registros de suas aparições existem aos montes, com algumas passagens mais discretas e outras – principalmente se o astro esteve muito visível no céu – mais famosas, às vezes registradas na arte, às vezes coincidindo com grandes eventos históricos, e às vezes combinando as duas coisas. Em 1456, a visita do Halley coincidiu com um período complicado das guerras entre cristãos e muçulmanos. Três anos antes, os turcos tinham tomado Constantinopla. E, naquele momento, estavam às portas de Belgrado, já nos Bálcãs. Por isso, o papa Calisto III tomou uma decisão extrema: no fim de junho, quando o cometa já estava bastante visível nos céus da Itália havia algumas semanas, excomungou o astro, já que era ele o portador da catástrofe.

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Bom, isso é o que dizem. E, como em muitos casos aqui deste blog, “o que dizem” não bate em quase nada com o que realmente aconteceu. Em 1909, um ano antes de uma nova passagem do Halley, o padre jesuíta holandês Johan Stein, então diretor-assistente do Observatório Vaticano, recolheu todos os relatos sobre a ira papal dirigida ao cometa e os publicou em um extenso artigo, originalmente em francês, e mostrou como, num autêntico “telefone sem fio”, a história foi ganhando em volume e surrealismo, sendo cantada em prosa e verso – literalmente. No fim do século 18, o matemático Pierre-Simon Laplace afirmou que “o papa Calisto ordenou orações para esconjurar o cometa e os turcos”, citando “aqueles tempos de ignorância”, e logo depois o poeta Pierre Daru usou a mesma expressão em um poema. A lenda ganhou sua versão definitiva no começo do século 19, quando Dominique Arago escreveu que, durante as orações públicas pedidas pelo papa, “se excomungava ao mesmo tempo o cometa e os turcos”. O detalhe final foi acrescentado por Jacques Babinet, que colocou um exército de 40 mil franciscanos desarmados na linha de frente dos cristãos contra os turcos, rezando para que a cólera celeste em formato de cometa se desviasse na direção do inimigo.

A Tapeçaria de Bayeux registra a passagem do cometa Halley em 1066, ano da Batalha de Hastings.
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Da França, a história passou rapidamente para países de língua inglesa, até ser capturada por dois velhos conhecidos nossos no fim do século 19. John Draper escreveu, com ironia, que, “quando o cometa Halley veio em 1456, sua aparição foi tão tremenda que foi necessária a intervenção do próprio papa. Ele o exorcizou e o expulsou dos céus. Ele se recolheu aos abismos celestes, aterrorizado pelas maldições de Calisto III, e não ousou voltar por 75 anos”. Andrew Dickson White, por sua vez, afirmou que “então, incorporou-se à ladainha o pedido ‘do cometa e do turco, livrai-nos, Senhor’. Nunca a intercessão papal foi tão ineficaz: o turco mantém Constantinopla sob seu poder até hoje, e o cometa teimoso, agora conhecido como Halley, retorna impávido, em intervalos curtos, desde então”.

Stein fez o que qualquer pesquisador sério faria: buscou as fontes originais, e encontrou nos Arquivos Vaticanos a bula de 29 de junho de 1456. Pois então: o documento, intitulado De Bulla Oratio­nis contra Infideles pro victoria populi Cristiani, não tem uma única palavra a respeito de cometa algum. Simplesmente ordena uma série de orações, procissões e outras práticas de devoção pela vitória dos cristãos contra os muçulmanos. Aliás, décadas antes de Stein, outros autores já haviam feito a mesma constatação. Não satisfeito, o jesuíta buscou cronistas da época do pontificado de Calisto III; eles mencionam, evidentemente, a ameaça turca e o cometa, mas nunca dando a entender que o papa havia lançado a fúria vaticana contra o astro. Os poucos que chegam a fazer uma ligação entre os dois fatos viram o cometa como um presságio do triunfo cristão, e não de alguma tragédia (em tempo: os cristãos venceram em Belgrado, em 22 de julho, mas àquela altura o Halley já não estava muito visível no céu).

Mas, se é assim, de onde raios Laplace e Arago tiraram essa história? O “marco zero”, diz Stein, é o humanista Bartolomeu Platina, encarregado por Sixto IV de escrever uma História dos papas em 1471 (15 anos depois da passagem do Halley, portanto), e que pela primeira vez associa Calisto, o cometa e os muçulmanos. Após a aparição do astro e das previsões catastróficas, diz Platina, “Calisto, para desviar a cólera de Deus, ordenou procissões em certos dias para que, se os homens fossem ameaçados de qualquer mal, que o fizesse cair inteiramente sobre os turcos, inimigos do nome cristão”. Convenhamos, é uma ligação tênue, mas bastou para que outros, especialmente quando avessos à Igreja, montassem uma lenda completa em cima dela, aproveitando-se do fato real de que, na época de Calisto, o fenômeno dos cometas não era totalmente compreendido e podia, sim, causar apreensão entre o povo. Toda essa história é contada em detalhes por Stein no livro Calisto III e o cometa Halley, publicado pelo Ateneu Pontifício Regina Apostolorum, em Roma, que traz o texto original de 1909 acrescido de introduções e prefácios atuais, e ao qual o diretor do Instituto Ciência e Fé da instituição, o padre Rafael Pascual, gentilmente me deu acesso. O triste é ver que, nesses 110 anos decorridos desde a publicação do trabalho criterioso do holandês, a lenda persiste. Para ficar em apenas dois exemplos, em 2005 o UOL publicou texto da AFP que errava até o nome do papa (Calisto II em vez de Calisto III) e, em 2013, o site Terra reproduziu a lorota, citando um livro publicado em 2009 na Espanha. Livros, sites e reportagens continuam repetindo a mentira, e infelizmente nada me faz acreditar que a lenda terá desaparecido quando o Halley voltar, em 2061.