Acredite, Leonardo da Vinci teve muito menos problemas para aprender sobre o corpo humano do que as lendas dizem por aí. (Imagem: Wikimedia Commons)| Foto:

Terminei ontem de ler a biografia de Leonardo da Vinci escrita por Walter Isaacson (o mesmo da biografia de Albert Einstein que comentei aqui tempos atrás). Uma mente sensacional, interessada em conhecer tudo sobre absolutamente tudo, um talento para perceber o que parece óbvio para muitos, combinado com um grande esforço para superar deficiências na formação intelectual. Um turbilhão mental – para usar uma imagem que fascinava Leonardo – tão grande que o florentino tinha iniciativa demais para “acabativa” de menos, deixando muita coisa ficou incompleta, desde pinturas até tratados sobre os mais diversos assuntos.

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Leonardo não é o tipo de personagem que costumamos lembrar como paradigmas de uma harmonia entre ciência e fé. Pintava temas sacros, mas porque era algo que todo artista de sua época fazia; a religiosidade não o interessava, e ele tinha algumas convicções que certamente horrorizariam os cristãos de seu tempo. No livro, também Isaacson parece tratar com um bocado de desdém o cristianismo medieval, com aquele tradicional preconceito da “Idade das Trevas”, embora aqui ou ali acabe admitindo alguma contribuição relevante dessa época para a ciência e a tecnologia renascentistas.

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Mas, então, o que a biografia de Leonardo faz no blog? Ela aparece aqui por causa do que eu não encontrei no livro. Não encontrei, por exemplo, sandices como esta aqui:

Sadly, he [Leonardo] was not able to share any of this knowledge with others, once again, because of the illegal nature of what he was doing. (…) He dissected bodies illegally at first, but eventually got special permission from the catholic church to dissect and sketch what he learned for a medical book. This is when he started to use the hospital director to get him bodies. Eventually, the hospital director got much ridicule over doing this and forbade dissections.

Ou isto aqui:

With the rise of the Church, all forms of bodily desecration were once again declared off limits. Not only were autopsies and dissections illegal, but so were surgeries on living persons. It was the sort of thinking that had Leonardo Da Vinci and Michelangelo cutting up cadavers in secret

Ou isto aqui:

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Era um tempo tão difícil, que não tinha nem luz e estudar anatomia em cadáver dava pena de morte. mas quem detinha o Leo? Quem? Quem?

Essa história dos cadáveres é interessante contar, já que ele [Leonardo] foi o “Pai da Anatomia”. Praticamente tudo o que se sabe sobre essa ciência veio dele. Sim minha gente, ele dissecava corpos de pessoas mortas. Escondido, é claro, porque mexer com mortos era coisa de bruxaria, era pecado. Então ele “roubava” corpos, muito básico.

Pois é. A lenda de que Leonardo da Vinci precisava dissecar cadáveres escondido, por medo da perseguição da Igreja Católica, não passa de lenda mesmo. Nos dois capítulos da biografia dedicados às pesquisas de Leonardo sobre anatomia (páginas 238-247 e 421-453), o que aparece de forma cristalina é que Leonardo não tinha dificuldade para conseguir corpos, tendo trabalhado em cooperação com hospitais e médicos-professores como Marcantonio della Torre. O único momento em que Leonardo parece ter algum problema é durante sua passagem por Roma (p. 491), quando o papa Leão X o proibiu de fazer dissecações, mas isso parece ser resultado de intrigas palacianas em que o papa deu ouvidos a desafetos de Leonardo, e não de questões doutrinárias.

Apenas em um momento Issacson flerta de leve com a lenda, ao dizer que “na época de Leonardo, as dissecações não eram mais de todo proibidas pela Igreja” (p. 426), dando a entender que em algum momento teria havido tal proibição. Como não há notas nem referências bibliográficas nesse trecho, é impossível saber de onde o biógrafo tirou essa informação. Fez-lhe falta ler o trabalho de Katharine Park, professora de História da Ciência na Universidade de Harvard, que pesquisou o tema e atestou que nunca houve proibição de dissecações. Um deslize pequeno, não compromete a obra nem de longe, mas infelizmente ajuda a perpetuar um mito que já foi abandonado pela academia, mas continua firme na imaginação popular.

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