O ano era 2009 e eu não tinha nem um ano escrevendo no Tubo de Ensaio quando fiquei sabendo de um livro chamado Galileo goes to jail and other myths on science and religion. Decidi que precisava colocar as mãos naquilo, e como valeu a pena! Era ouro puro: 25 capítulos curtos em que vários especialistas derrubavam aquelas histórias que todo mundo já tinha ouvido alguma vez na vida: que Giordano Bruno tinha sido queimado por causa de suas ideias “científicas”; que Galileu foi preso, torturado e sabe-se lá mais o quê por dizer que a Terra girava em torno do Sol; que os cristãos medievais achavam que a Terra era plana; que a Igreja proibira a dissecação de corpos na Idade Média; que Charles Darwin tinha se reconvertido ao cristianismo no leito de morte; que Albert Einstein acreditava em um Deus pessoal; que a Igreja Católica causou um hiato de mil anos no avanço científico... O responsável por esse trabalho monumental, o historiador da ciência Ronald Numbers, nos deixou em 24 de julho, aos 81 anos. Criado em uma família adventista, tornou-se agnóstico; agora tem todas as respostas e, espero eu, estará recebendo a recompensa pelo bem que fez ao bom diálogo entre ciência e fé.
Publiquei, na revista Dicta&Contradicta, uma das primeiras resenhas de Galileo goes to jail no Brasil, e desde então disse e repeti que esse livro precisava urgentemente ser traduzido para o português. Ganhou uma edição lusa em 2012, e antes tarde do que nunca a Thomas Nelson, em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência, trouxe a obra para o Brasil em 2020 com o título Terra plana, Galileu na prisão e outros mitos sobre ciência e religião. É um livro essencial porque, com ensaios que aliam concisão e rigor histórico, funciona como uma verdadeira “agência de checagem” que bota um enorme carimbo de “falso” em muita fake history que nos acostumamos a ler e ouvir sem questionar, criando uma imagem completamente falsa da história da relação entre ciência e fé baseada no paradigma do conflito inerente – a “ideia que não morre”, para citar o título de outra obra, mais recente, também organizada por Numbers em conjunto com Jeff Hardin e Thomas Binzley. Isso nos lembra, aliás, que a obra de Numbers vai muito além de Galileo goes to jail. “Fui influenciado por The Creationists, pela mediação de outros; devo a Numbers o entendimento de que o criacionismo da terra jovem é uma invenção moderna e não uma ortodoxia cristã”, disse ao Tubo o presidente da ABC2, Guilherme de Carvalho, referindo-se à história do movimento criacionista publicada em 1992.
Galileu na prisão, livro organizado por Numbers, é ouro puro: funciona como uma verdadeira “agência de checagem” que bota um enorme carimbo de “falso” em muita fake history que nos acostumamos a ler e ouvir sem questionar
Numbers esteve no Brasil em 2012, para um evento do projeto Ciência e Religião na América Latina, da Universidade de Oxford, realizado no Rio de Janeiro. “Tive a grata oportunidade de me encontrar com ele, e fixou-se em minha mente sua gentileza e disposição para conversar”, recorda Guilherme de Carvalho. Alexander Moreira-Almeida, do Nupes-UFJF, também foi pioneiro em divulgar Galileo goes to jail por aqui. “Devo enorme gratidão a Ron Numbers por ter me colocado em contato com o Ian Ramsey Centre for Science and Religion, da Universidade de Oxford. Foi ele quem indicou meu nome ao pesquisador Ignacio Silva, que, junto com Andrew Pinsent, estavam conduzindo um vasto projeto sobre o campo da ciência e religião na América Latina, sob financiamento da Templeton Foundation. Daí, se iniciou uma frutuosa parceria”, conta Moreira-Almeida, que aproveitou a passagem de Numbers pelo Brasil para levá-lo também a Juiz de Fora. Na ocasião, ele gravou uma longa entrevista:
Em 2021, para as comemorações dos 15 anos do Nupes, Numbers gravou uma nova entrevista, desta vez remotamente:
Infelizmente, os mitos que o livro organizado por Numbers derrubou ainda resistem por aí, em séries de ficção histórica e até mesmo no remake de Cosmos, um clássico da divulgação científica – menos mal que neste caso houve uma reação imediata de historiadores e outros especialistas. Ler e espalhar o trabalho de Numbers é a melhor forma de homenagearmos esse verdadeiro mythbuster.
Ex-“braço direito” do arquiateu Richard Dawkins se converte ao cristianismo
Entre 2006 e 2010, Josh Timonen foi uma espécie de “faz-tudo” para Richard Dawkins, gravando os vídeos do ateu militante, montando seu website e ajudando na venda de produtos, entre uma série de outras tarefas. Isso lhe rendeu até agradecimentos públicos de Dawkins em alguns de seus livros. Mesmo depois de ter deixado a equipe de Dawkins, Timonen continuou sendo ateu – até pouco tempo atrás. Recém-chegados a uma cidade nova no Texas, vindos do Oregon, Timonen e sua família buscaram uma igreja única e exclusivamente para terem algum tipo de vivência comunitária, mas aquilo terminou com uma autêntica conversão. Ele narrou todo esse processo em uma entrevista ao apologista cristão Ray Comfort – o que tem um valor simbólico impressionante, pois Comfort havia sido bastante ridicularizado por Dawkins anos atrás, no exato período em que Timonen trabalhava para o biólogo britânico.
Achei uma pena que eles não tenham conversado sobre temas de ciência e fé, embora também me pareça que esse nem era o objetivo; o mais importante ali era o testemunho pessoal de Timonen. Talvez no momento em que ele disse ainda não ter todas as respostas para objeções ateístas ele estivesse se referindo a algo assim. Por exemplo, suponho que Timonen também defendesse a teoria da evolução como a melhor explicação para a variedade da vida na Terra; quando ele abandonou o ateísmo, deixou essa convicção de lado também, ou soube encontrar uma conciliação, por exemplo enxergando a evolução como a forma que Deus usa para criar? Até fui atrás de mais informação, mas ainda não encontrei.
SBPC bem que podia imitar sua congênere americana
Domingo passado, minha esposa e eu levamos os filhos ao Dia da Família na Ciência, realizado sempre no último dia da reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, que em 2023 ocorreu aqui em Curitiba. Muita coisa bacana, feita pensando nas crianças, que não se contentam em apenas olhar, precisam mexer, colocar a mão nas coisas; felizmente havia muita gente circulando pelos estandes, sinal de que há interesse pela ciência. Aí me bateu a curiosidade: o que a SBPC está fazendo para se aproximar do público religioso?
Infelizmente, a resposta é “praticamente nada”. Enquanto a Associação Americana para o Avanço da Ciência tem o Diálogo sobre Ética, Ciência e Religião (DoSER) desde 1995, para conversar com as comunidades religiosas, a SBPC não tem iniciativa nem permanente, nem esporádica, neste sentido – se tem, esconde muito bem, porque não achei nada em seu site, e a assessoria de imprensa da entidade nem respondeu ao meu questionamento. E isso que a SBPC já teve um presidente que fazia parte da Pontifícia Academia de Ciências, o biólogo Crodowaldo Pavan... O que a SBPC tem, isso sim, é um Grupo de Trabalho Estado Laico, que a julgar pelos conteúdos produzidos é mais laicista que laico, pretendendo conceder à religião apenas aquele espaço privado, sem aceitar que ela tenha uma dimensão pública. Inclusive já comentei aqui na coluna um artigo do coordenador do grupo, publicado em 2017.
O Guilherme de Carvalho tem insistido, em suas colunas, nas consequências trágicas da incapacidade de diversos setores, como governo e imprensa, de dialogar honestamente com os evangélicos. Vale o mesmo para a ciência em geral, e para a SBPC em específico. Rotular e estigmatizar os evangélicos (e os demais religiosos) como fundamentalistas anticiência, sem um mínimo esforço para entender como eles pensam, e por que pensam o que pensam, forçando-os (escancaradamente ou sutilmente) a escolher entre sua fé e a ciência, é pedir para receber apenas incompreensão e resistência em troca, o que por sua vez alimenta mais rótulos e estigmatização. A AAAS escolheu outro caminho e colhe os frutos.
Falando no DoSER...
... a diretora emérita deste programa da AAAS, a astrônoma Jennifer Wiseman, já deu entrevista ao Tubo de Ensaio em 2018, e essa conversa está em A razão diante do enigma da existência, livro que reúne quase 30 entrevistas feitas ao longo de quase 15 anos de blog e coluna. Veja, por exemplo, o que ela disse sobre o DoSER:
“Os cientistas estão percebendo que a melhor maneira de fazer as pessoas apreciarem a ciência é conhecê-las melhor e ajudá-las a perceber que os cientistas estão do seu lado, querem usar a ciência para fazer o bem. (...) Ajudamos os cientistas, independentemente de sua fé (ou de não terem fé nenhuma), a conhecer e se relacionar com várias comunidades religiosas. E o sucesso é tremendo. Temos formado cientistas para atuarem nos seminários onde os futuros líderes religiosos, das mais variadas tradições, são formados. Os cientistas gostam, porque estão aprendendo muito sobre esses grupos e sobre as preocupações e interesses que eles têm em relação à ciência. E as comunidades religiosas também têm aprovado, porque aqueles que gostam de ciência ficam maravilhados ao saber mais sobre os avanços que temos feito em todos os campos, incluindo astronomia, neurociência, genética, biologia.”
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