No fim de novembro e no começo deste mês, uma pequena controvérsia envolvendo a Pontifícia Academia de Ciências ganhou a mídia especializada. No site da New Scientist, Andy Coghlan escreveu que “cientistas do Vaticano pediam apoio a transgênicos”. No dia seguinte, o mesmo site publicou um editorial curtinho comentando a reportagem.
Na verdade, Coghlan estava se referindo a um documento emitido após um encontro da Pontifícia Academia de Ciências em 2009 para discutir a questão dos transgênicos. No documento (que inclusive não é oficial, da Academia, e sim algo elaborado com a participação de gente da Academia) não existe nenhuma outra data a não ser a do próprio encontro realizado no ano passado, então fica difícil imaginar por que ele só virou notícia agora; a não ser que tenha sido publicado recentemente (segundo o Independent londrino, o texto é mais antigo, mas vazou há poucos dias).
O documento faz uma avaliação dos avanços que têm sido obtidos com os transgênicos e alguns desafios que ainda precisam ser superados, especialmente em relação às políticas dos produtores de grãos, que não devem prejudicar os países menos desenvolvidos. Uma avaliação mais “moral” dos transgênicos ocupa um espaço muito curto do texto, e o trecho mais significativo nesse sentido está aqui:
Assim, os humanos se tornam administradores de Deus ao desenvolver e modificar seres dos quais podem obter benefícios pela aplicação de métodos de melhoria. Embora a ação humana num cosmo infinito seja limitada, mesmo assim eles participam do poder divino e são capazes de construir seu mundo, isto é, um ambiente adequado a suas necessidades corporais e espirituais, sua subsistência e seu bem estar. Essas novas formas de intervenção no mundo natural não deveriam ser vistas como contrárias à lei natural que Deus deu à criação. Como Paulo VI disse à Pontifícia Academia de Ciências em 1975, por um lado o cientista deve considerar honestamente as questões relativas ao futuro da humanidade e, como pessoa responsável, ajudar a prepará-lo e preservá-lo para a sobrevivência e o bem-estar, e eliminar riscos. Assim, demonstramos nossa solidariedade com as gerações presentes e futuras como uma forma de amor e caridade cristãos. Por outro lado, o cientista também deve estar animado pela confiança de que a natureza ainda tem guardadas possibilidades ainda a serem descobertas e usadas pela inteligência humana, para alcançar o nível de desenvolvimento que está nos planos do Criador. Assim, a intervenção científica deveria ser vista como um aperfeiçoamento da vida física, ou da natureza vegetal/animal para o benefício da vida humana, da mesma forma como “são muitas as disposições úteis à vida humana que se acrescentaram à lei natural, tanto por mandato divino quando por leis humanas” (Suma Teológica, I-II, 94, a.5). O trecho é uma resposta ao que talvez seja o principal argumento de ordem moral (já que existem outros tipos de questionamento) à pesquisa com transgênicos: o de que eles representariam uma tentativa de “brincar de Deus”.
Parece que a New Scientist conseguiu fazer algum barulho, porque dias depois o chefe da Academia esclareceu que o documento não significava aval da Igreja Católica aos transgênicos. O texto apenas ofereceria elementos para o debate. De fato, há questões morais que a pesquisa com transgênicos levanta. Uma delas, como vimos, diz respeito à moralidade da pesquisa em si. Outra questão tem relação com a aplicação dessas pesquisas, quem tem direito a elas, como os benefícios dos transgênicos devem ser distribuídos no planeta.
Particularmente acho que aqueles que esperam um “ok” do Papa aos transgênicos (ou uma condenação) podem tirar o cavalinho da chuva. Não creio que seja assunto para definições dogmáticas. Mas a Igreja tem todo o direito de oferecer argumentos para o debate; além disso, cada nova tecnologia leva alguns (ou muitos) católicos a se perguntarem sobre a licitude de certo procedimento. Os texto apresentado, ainda que não seja uma declaração oficial da Academia, apenas aplica princípios gerais a esta situação específica, mas não deixa de servir como resposta a quem por acaso tiver dúvidas morais sobre a possibilidade de consumir ou produzir os transgênicos.
A agência católica Zenit também publicou ontem uma entrevista sobre o assunto com um dos autores do documento, Piero Morandini. Ele mesmo esclarece que não se trata de um texto oficial da Academia; vale a pena ler suas ponderações.
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