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Quando, em 2014, o papa Francisco disse que Deus não era “um mago, com uma varinha mágica capaz de fazer tudo”, parte da imprensa entrou em polvorosa, como se a Igreja finalmente tivesse feito as pazes com o Big Bang e a Teoria da Evolução – uma ignorância histórica gritante que poderia ser facilmente resolvida se os jornalistas soubessem quem foi Georges Lemaître e lessem a Humani Generis, encíclica de Pio XII. Mas, se não dá para esperar muito dos meus colegas jornalistas, o que podemos esperar dos seminaristas, futuros padres, quando o assunto é evolução? Foi a pergunta que me fiz em 2019, e que me levou a realizar uma segunda sondagem on-line com seminaristas (a primeira ocorreu em 2011). Pois os resultados dessa sondagem acabaram de ser publicados na Zygon, uma das principais (se não for a principal) revistas acadêmicas de ciência e religião de todo o mundo.
O questionário tinha uma série de perguntas sobre como os seminaristas enxergam a relação entre ciência e fé (felizmente, são raríssimos os que compram a narrativa do conflito), mas o foco principal estava em quatro tópicos: o quanto os entrevistados sabiam sobre a Teoria da Evolução; se os seminaristas conheciam pronunciamentos, escritos ou discursos dos papas sobre o assunto; se eles consideravam que a evolução era um fato; e se eles consideravam que a evolução é compatível com a fé católica. Sobre os dois últimos tópicos, sim, são coisas diferentes: você pode não aceitar a explicação evolucionista para a variedade da vida na Terra, mas mesmo assim considerar que ela não nega nenhum princípio da fé. Ou vice-versa. Eu mesmo considero, como já disse aqui muitas vezes, que a evolução é a melhor explicação que existe, mas não acho que um criacionista ou defensor do Design Inteligente esteja batendo de frente com a doutrina católica. Ninguém vai pro inferno por causa disso.
Cruzando os dados, o que eu descobri? Primeiro, que os grupos de seminaristas que demonstram maior conhecimento sobre a evolução também tendem a defender visões evolucionistas sobre a vida na Terra – tanto na forma de uma “evolução guiada por Deus” (atenção: não confundir com Design Inteligente) quando na versão de uma “evolução sem participação divina” –, bem como também tendem a defender a compatibilidade entre evolução e catolicismo. Esse tipo de correlação entre conhecimento da teoria e sua aceitação tem sido bastante explorado em vários estudos, com a população geral e entre grupos específicos, e os resultados são bem variados: às vezes se estabelece a correção, às vezes não.
Se mais adiante ficar estabelecido que a posição dos papas realmente tem uma boa dose de influência sobre o pensamento de um católico a respeito da teoria da evolução, seus defensores terão uma bela avenida para trilhar
Mas a minha curiosidade principal era outra: eu queria saber o que pensavam os seminaristas que conheciam os pronunciamentos papais sobre evolução, desde a Humani Generis até o discurso de 2014 de Francisco, passando pelo famoso discurso de João Paulo II em 1996 e algumas audiências menos conhecidas de Bento XVI. Primeiro, era preciso saber se os seminaristas conheciam essas declarações. Alguns foram bastante genéricos, respondendo coisas sobre “João Paulo II falou do tema”, mas sem dar referências. Outros ainda arriscaram respostas erradas. Mas houve quem tivesse a referência correta ou soubesse exatamente o que certo papa afirmou.
E a correlação entre aceitação da evolução e o conhecimento das declarações papais apareceu. Na média de todos os seminaristas entrevistados, 48% defenderam posições evolucionistas (com ou sem a orientação divina). Mas em todos os grupos que demonstravam ao menos algum nível de conhecimento das declarações papais, a aceitação da evolução ficou acima da média, com uma única exceção bastante curiosa e que, por enquanto, vai ficar sem explicação: a dos que conheciam em detalhe o discurso de João Paulo II em 1996.
Da mesma forma, na média geral 55,9% dos seminaristas consideraram a evolução “totalmente compatível com a doutrina”, ou “mais compatível que contrária” à fé católica. Mas essas respostas também foram mais frequentes entre os entrevistados que conheciam os pronunciamentos dos papas, chegando a 86,4% entre os que deram respostas exatas ou imprecisas sobre a posição de João Paulo II a respeito do tema. Em resumo, seminaristas que conhecem as declarações papais sobre evolução tendem a aceitá-la como verdadeira e também como compatível com a fé católica, mais que os seminaristas que desconhecem esses pronunciamentos.
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No entanto, alto lá! Como bem demonstrou Robert Matthews em seu clássico artigo “Cegonhas trazem bebês (p=0.008)”, correlação não quer dizer causalidade. Não é possível dizer, apenas com os números que eu levantei, que saber o que um papa diz sobre a evolução influencia a visão do seminarista sobre o tema. Isso pode ter servido como influência para alguns? Pode. Mas também pode acontecer que um seminarista já fosse convicto a respeito do fato da evolução e de sua compatibilidade com a fé antes de saber o que os papas disseram. Os caminhos pelos quais alguém constrói sua visão sobre o tema são vários, e conhecê-los exigiria uma conversa detalhada, cara a cara, em vez de um questionário on-line. Foi a sugestão que deixei para pesquisas futuras.
Se mais adiante ficar estabelecido que a posição dos papas realmente tem uma boa dose de influência sobre o pensamento de um católico (leigo ou clérigo, tanto faz) a respeito do assunto, os evolucionistas terão uma bela avenida para trilhar. Isso porque a enorme maioria dos entrevistados não lembrou de nenhuma ocasião em que um papa tivesse dito algo sobre a evolução. Então, desfazer esse desconhecimento, mostrando aos católicos que vários papas deixaram claro não haver nenhuma oposição entre a fé católica e a evolução das espécies, poderia eliminar resistências e deixar esses católicos mais tranquilos para aceitar também a avassaladora evidência existente hoje em favor da evolução.
Por fim, também perguntei aos seminaristas que consideraram a evolução “mais contrária que compatível” ou “totalmente contrária à doutrina” católica qual era o conflito que eles viam entre a teoria de Darwin e o catolicismo. Para a surpresa de ninguém, a maioria das respostas tratou da origem do ser humano e da questão do monogenismo em oposição ao poligenismo. De fato, não são temas fáceis e que conjugam uma série de dados no campo da biologia e da genética com antropologia teológica das bravas. Mas tem muita gente boa tentando desfazer esse nó, e certamente voltaremos a esse tema aqui no blog.