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O cardeal Konrad Krajewski (em pé) acompanha moradores de rua que esperam para receber a vacina contra a Covid-19 em campanha do Vaticano.
O cardeal Konrad Krajewski (em pé) acompanha moradores de rua que esperam para receber a vacina contra a Covid-19 em campanha do Vaticano.| Foto: AFP Photo/Vatican Media/Handout

Está repercutindo bastante nesta quarta-feira um parecer da recém-criada Associação de Médicos Católicos de São Paulo sobre as vacinas contra a Covid-19. Uma repercussão meio tardia, pois o texto já tem um mês, mas só foi parar na boca do povo agora, graças a uma coluna da Monica Bergamo na Folha de S.Paulo. O parecer, convenhamos, seria até desnecessário, dada a profusão de documentos do Vaticano, bastante claros sobre o tema. Mas, já que o sacerdote que acompanha o grupo pediu... o problema é que, por melhores que sejam as intenções por trás dele, o texto – escrito unicamente pelo presidente da entidade, Harold Barretto, conforme entrevista à Gazeta do Povo, e que não passou por revisão de ninguém antes de ser publicado – vai muito além do que a Igreja diz sobre o tema, ainda por cima com uma série de imprecisões, omissões e ilações que tornam esse parecer um enorme desserviço, especialmente para algo que se pretende técnico e que pode embasar líderes da Igreja no aconselhamento a seus fiéis.

Para começar, logo no primeiro parágrafo, um erro grosseiro: “a maioria das vacinas hoje usa para o seu desenvolvimento células-tronco originárias de fetos abortados”. Na verdade, não é bem assim – muito menos no caso da Covid-19. Aliás, salta aos olhos de qualquer um que já tenha pesquisado um pouquinho sobre essas vacinas que o parecer não menciona, em nenhum momento, a linhagem HEK-293, que é a predominante nas pesquisas de imunizantes contra o coronavírus. E olhem que, em determinado momento, o parecer faz uma lista até que grande de linhagens celulares provenientes de fetos abortados. Acontece que a HEK-293 não tem nada a ver com células-tronco: sua origem está em células renais (portanto, já diferenciadas) de um feto abortado nos anos 70. E, se formos levar bem ao pé da letra, elas já não são propriamente as células daquele rim daquele feto, mas “cópias das cópias das cópias” (o que não atenua a responsabilidade moral, que fique bem claro).

O texto da Associação de Médicos Católicos de São Paulo não explica tudo o que precisa explicar e supõe mais do que deveria supor

Uma lacuna significativa para um parecer técnico é o fato de o texto jamais explicar como essas linhagens celulares são usadas na fabricação das vacinas – um processo que eu já expliquei no primeiro texto que publiquei no blog sobre o tema. Ali, por exemplo, você vai ver que as células HEK-293 são usadas para que haja a multiplicação dos vetores virais, mas depois há uma separação – a vacina propriamente dita não contém nenhuma célula HEK-293. Considerando que Barretto gastou muita tinta com uma desnecessária história das vacinas, bem valeria a pena ter buscado essa informação, que é muito mais relevante para o dilema atual que ler sobre Edward Jenner e companhia.

É na hora de responder as cinco perguntas que a coisa degringola de vez. Em pelo menos duas ocasiões o parecer dá corda às teorias da conspiração sobre a possibilidade de alteração do DNA humano no caso das vacinas de RNA mensageiro (Pfizer/BioNTech e Moderna), algo que já foi desmentido por diversas autoridades no assunto, incluindo o padre Nicanor Austriaco, no texto que traduzi e publiquei dias atrás. E o dominicano deve entender um pouquinho do assunto, sendo especialista em biologia molecular. Vejam esse trecho do parecer: “Obviamente nenhum desenvolvedor de vacina admite a intenção de realizar manipulação genética, mas como podemos perceber a base das novas vacinas que usam vetores virais é a mesma para a realização de uma modalidade de terapia genética, o que permite suspeitas de interesses escusos por parte de algum desenvolvedor para a quebra de alguma soberania nacional por bioterrorismo”. Desde quando esse tipo de ilação cabe em algo que pretende ser um parecer técnico?

E a nota não para por aí. “Fica a suspeita pela existência de um lobby enorme para a indústria farmacêutica, financiadora de maior destaque hoje da Organização Mundial da Saúde (OMS) e depositadora de enormes recursos na mídia com publicidade (...) vale saber quem hoje são os acionistas importantes da indústria farmacêutica, destacando a Fundação Bill & Melinda Gates que financiam fortemente a OMS e ofertam serviços em inteligência artificial para a descoberta de novas medicações pela empresa Schrodinger. Bill Gates fala abertamente sobre controle populacional com uso de progestágenos e dispositivos intrauterinos”. Isso induz o leitor ao seguinte raciocínio: Bill Gates defende controle populacional; ele está financiando a vacina; portanto, a vacina deve ser um cavalo de Troia para controle populacional. É um non sequitur (falácia em que a conclusão não deriva das premissas) dos bravos. Fora todo o tom de “isso a mídia não mostra”, que aparece na resposta 1, seguido da insinuação de que o jornalismo mundial está no bolso da indústria farmacêutica.

Portanto, pode até ter sido escrito com a melhor das intenções, mas é um tremendo desserviço, sim. Não explica tudo o que precisa explicar e supõe mais do que deveria supor. Não surpreende que esteja causando preocupação dentro da Arquidiocese de São Paulo. Mas a colunista, por sua vez, comprou sem questionamentos uma informação que é uma meia-verdade, ao escrever que “O Instituto Butantan também informa que não há uso de células-tronco no desenvolvimento da Coronavac”. De fato, não tem células-tronco na Coronavac, mas a linhagem HEK-293 foi, sim, usada nos testes da vacina – aqui está o paper dos responsáveis pelo imunizante explicando o processo todo. E não foi só ela: todas as vacinas que estão sendo usadas mundo afora (Pfizer/BioNTech, Oxford/AstraZeneca, Coronavac, Moderna e Sputnik V) usaram HEK-293 em algum momento, seja na produção, seja nos testes.

Enfim, se você quiser um guia seguro quanto a questões mais “técnicas” da vacina (Como fizeram tão rápido? Vai mudar o meu DNA? Vai deixar as mulheres estéreis?), recomendo muito o texto do padre Nicanor Austriaco. Para os aspectos ético-morais, fique com o que o Vaticano diz: enquanto não houver alternativa eticamente produzida, é lícito usar as vacinas que usaram linhagens oriundas de fetos abortados, mas o direito à objeção de consciência está plenamente garantido; além disso, vacinados ou não, os católicos precisam deixar claro para governos e laboratórios que desejam o fim do uso dessas linhagens e o desenvolvimento de vacinas e medicamentos respeitando a dignidade da pessoa humana. Mais que isso é querer ser mais católico que o papa ou ser propagador de teoria da conspiração. Não caia nessa.

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