O “gene de Deus” o John Cleese já descobriu. Será que existe também um “gene da mediunidade”?
A primeira parte do parágrafo acima, obviamente, é brincadeira; mas a segunda é séria. Um time de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) se propôs a descobrir se pessoas com alegadas capacidades mediúnicas têm algo de diferente no seu genoma, em comparação com o restante da população. As descobertas são interessantes, e os resultados já foram aprovados para publicação na Revista Brasileira de Psiquiatria (um pre-print já está disponível no site da publicação).
A ideia foi do professor Wagner Gattaz, do Laboratório de Neurociências da Faculdade de Medicina da USP. Ele e seus colegas já haviam avaliado se havia algo particular relativo aos médiuns em termos de distúrbios mentais (não há). Outros estudos já examinaram médiuns com tecnologias como ressonância magnética e eletroencefalograma. Mas os responsáveis pelo estudo não encontraram na literatura nenhuma tentativa de encontrar características genéticas peculiares dos médiuns. “Não queríamos provar que a mediunidade existe. Queríamos estudar uma característica das pessoas que se dizem médiuns, para ver se componentes genéticos explicam essa característica”, disse Gattaz ao Tubo de Ensaio.
Entre 2020 e 2021, o grupo selecionou 54 pessoas com habilidades mediúnicas reconhecidas, que tinham mais de dez anos de atividade e que não recebiam por isso. Um segundo grupo era formado por parentes de primeiro grau desses médiuns – em ordem de preferência: irmãos do mesmo sexo, irmãos de sexo diferente, pais, filhos e meio-irmãos –, resultando em 53 pessoas (dois dos médiuns eram irmãos gêmeos idênticos, bastando um parente para a comparação). Todos ofereceram amostras de DNA, com a análise do exoma – a parte do código genético contendo os genes que codificam as proteínas. Por que não analisar o genoma completo? “O exoma compreende apenas 1% a 2% do genoma, mas esses genes são responsáveis pela codificação de 85% das proteínas necessárias para nossa vida. A chance de haver associações de qualquer traço, por exemplo, de uma doença ou uma característica da personalidade, é maior no exoma, onde também temos uma identificação maior das funções dos genes”, explica o professor Gattaz.
“Não queríamos provar que a mediunidade existe. Queríamos estudar uma característica das pessoas que se dizem médiuns, para ver se componentes genéticos explicam essa característica.”
Wagner Gattaz, pesquisador do Laboratório de Neurociências da Faculdade de Medicina da USP.
Na comparação dos médiuns com parentes não médiuns, os pesquisadores viram que os médiuns tinham 15.669 variações que afetavam 7.269 genes. Os cientistas, então, estabeleceram uma “linha de corte”, buscando apenas os genes que tinham alterações em pelo menos um terço dos médiuns, e terminaram com uma lista de 33 genes cujas variações foram encontradas nos médiuns, mas não nos seus parentes. Em tese, tratando-se de duplas de pessoas com laços de primeiro grau, esses genes não deveriam ter alterações, ou as variações deveriam ocorrer de forma mais aleatória. “Com um número grande de variações, é possível que algumas existam somente por acaso, mas o que encontramos foram diferenças bastante consistentes, e a probabilidade de elas terem ocorrido por acaso é menor que 1 para mil”, afirma Gattaz. O psiquiatra Alexander Moreira-Almeida, da UFJF, coautor do estudo, ainda lembra que a pesquisa incluía um terceiro grupo, de 12 médiuns sem parentes, e que também tinham, em sua maioria, as mesmas alterações genéticas.
Desses 33 genes, os que tiveram os maiores índices de alteração têm relação com o sistema inflamatório e imunológico. O “campeão” é o Mucin-19, que foi encontrado alterado em 87% dos médiuns em comparação com seus parentes, e aqui há uma incrível coincidência, já que ele atua na glândula pineal: um pequeno órgão localizado dentro do crânio, que produz a melatonina e regula nosso relógio biológico – e onde, segundo o filósofo René Descartes, “mora” a alma humana.
Investigação está só começando, dizem autores
Mas calma lá, que nada disso quer dizer que os pesquisadores acharam o “gene da mediunidade”. Afinal, eles mesmos ressaltam que acharam correlação, mas isso não é a mesma coisa que achar causalidade. “Acho pouco provável que um determinado gene seja responsável por um traço tão complexo quanto a mediunidade”, antecipa Gattaz. O próximo passo é óbvio para qualquer um que saiba como a ciência é construída: replicar o estudo com uma nova amostra. “Se obtivermos os mesmos resultados, o achado fica mais robusto; aí, sim, vamos identificar cada um desses 33 genes e sua função, e poderemos começar a formular hipóteses de causalidade. Mas mesmo assim isso vai ter de ser comprovado ou falseado experimentalmente”, afirma o professor da FMUSP. “Os genes frequentemente têm várias funções. Esses genes estão envolvidos muitas vezes em aspectos sensoriais, epiteliais e imunológicos, mas não quer dizer que não tenham outras funções, e pode ser que estejamos descobrindo algo nesse sentido, mas isso ainda vai exigir muita investigação”, diz Moreira-Almeida.
O psiquiatra da UFJF e diretor do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde (Nupes) gosta muito de usar a analogia da televisão quando fala das relações entre mente e cérebro: o televisor não gera a imagem (como o cérebro não gera a mente); ele apenas retransmite a imagem gerada em outro lugar, e o faz de acordo com suas limitações, pois cada tipo de aparelho tem uma capacidade diferente de captar e retransmitir essa imagem (preto-e-branco, em cores, em SD, HD, 4K, o que for), que pode inclusive ser exibida em outros aparelhos que não o televisor (como um smartphone). Seriam esses genes umas “pecinhas” especiais que permitiriam a uma tevê de tubo captar e transmitir em alta resolução? “É possível que o cérebro dessas pessoas seja mais poroso, mais permeável, capte aspectos da realidade que não sejam captados normalmente. Esse filtro do cérebro pode ser um pouco mais poroso mesmo”, diz Moreira-Almeida.
Psiquiatra propõe superação do modelo “natural vs sobrenatural”
Quem lê o Tubo sabe que eu não vejo problemas em pesquisar possíveis explicações naturais para fenômenos extraordinários (como o “milagre do Sol” de Fátima ou a Estrela de Belém, por exemplo); só me incomoda um tipo de obsessão segundo a qual, diante de um acontecimento extraordinário, tem de haver uma explicação natural. Se por acaso houvesse mesmo um componente genético que diferencia as pessoas que têm alegadas experiências mediúnicas, como ficaríamos?
Moreira-Almeida acha que essa dicotomia entre “natural” e “sobrenatural” precisa ser superada. “Eu não gosto dessa palavra, ‘sobrenatural’. É uma divisão problemática, artificial. Eu defendo o que chamamos de ‘naturalismo expandido’, a ideia de que a natureza não se compõe apenas do aspecto físico, mas também pela consciência, pela mente, pela dimensão espiritual ou mental. Isso inclusive nos permite poder investigar cientificamente esses aspectos da natureza”, defende o psiquiatra. Wagner Gattaz vai na mesma linha. “O papel da ciência é nos ajudar a compreender melhor o mundo; a neurociência, minha área, busca conhecer as relações entre nosso mundo e o cérebro, entre o cérebro e a mente. Ao decidirmos pesquisar a mediunidade procurando elementos genéticos, estamos lançando uma luz de seriedade científica no estudo de fenômenos espirituais”, defende.
Os autores do estudo ainda gravaram um vídeo explicando detalhes da pesquisa e respondendo a algumas críticas:
Congresso de ciência e fé em Roma abre inscrições e terá visita ao Observatório Vaticano
Novidade sobre o XII Congresso Latino-Americano de Ciência e Religião, em setembro, que excepcionalmente este ano ocorrerá em Roma (como expliquei no começo do ano, em nossa agenda de eventos para 2025): as inscrições já estão abertas, tanto para a modalidade presencial quanto para a remota (esta última é gratuita). Para quem tiver a felicidade de poder ir a Roma para o evento, por um valor adicional ainda será possível participar de duas visitas: aos Museus Vaticanos e às instalações do Observatório Vaticano, em Castelgandolfo. A organização também já anunciou os nomes de alguns palestrantes, como o monge cisterciense e físico catalão Lluc Torcal Sirera, o teólogo norte-americano John Haught, e o físico e filósofo Rafael Martínez.