Uma equipe do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde (Nupes), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), publicou recentemente no site da revista Explore uma pesquisa muito interessante sobre o fenômeno das cartas psicografadas – escritas por um médium, e supostamente ditadas por pessoas já falecidas. Um grupo de cinco integrantes do Nupes, incluindo dois estudantes de Medicina, pediu a oito médiuns que psicografassem mensagens, e as cartas foram, depois, avaliadas pelos parentes ou amigos aos quais elas estariam endereçadas. Os resultados da pesquisa não indicaram nenhuma evidência de que o fenômeno da psicografia é real.
A pesquisa adotou uma série de protocolos para garantir que os médiuns não conseguissem nenhuma informação antecipada sobre as pessoas mortas, a não ser uma foto e o primeiro nome. O médium e o parente/amigo (chamado no artigo de “consulente”) do falecido não se encontraram em nenhum momento – nem mesmo podiam residir na mesma cidade; em vez disso, foram os pesquisadores do Nupes que participaram das sessões de psicografia. São circunstâncias bem diferentes daquelas que os médiuns encontram normalmente, e três dos primeiros a serem convidados a participar do estudo recusaram a proposta alegando justamente esse fato. Os que aceitaram sabiam que se tratava de uma pesquisa científica e foram informados sobre como ela seria conduzida.
As 18 sessões de psicografia deram origem a 78 cartas e 64 descrições orais, que foram transcritas pela equipe do Nupes. Os pesquisadores, então, fizeram uma triagem rigorosa, excluindo todas as mensagens que não traziam nenhuma informação que pudesse ser factualmente comprovada pelo consulente. Um médium em específico teve todo o seu trabalho descartado, pois ele não soube dizer a qual das pessoas cujas fotos ele tinha diante de si se referia cada uma das 26 descrições orais e a única carta que ele havia produzido. No fim, sobraram 31 cartas e 37 descrições orais. Quase todas elas foram enviadas aos consulentes (sendo chamadas de “cartas-alvo” ou “descrições-alvo”), que ainda recebiam cinco outras mensagens supostamente ditadas ou descrições referentes a pessoas de mesmo sexo e idade semelhante (essas eram as “cartas-controle” ou “descrições-controle”).
Condições em que ocorreram as sessões de redação de cartas psicografadas foram diferentes daquelas normalmente encontradas pelos médiuns, e isso pode ter influenciado os resultados, segundo pesquisadores
Essas pessoas, então, tinham de analisar cada carta em uma escala que media a certeza/probabilidade de que aquela era a carta ditada por seu amigo/parente. O mesmo foi feito para as descrições orais dos falecidos. E, por fim, para cada informação factual presente nas cartas ou descrições, os amigos/parentes tinham de dizer se ela era totalmente verdadeira, parcialmente verdadeira, falsa ou se não sabiam se era verdadeira ou falsa. Só depois de responder aos pesquisadores as pessoas eram informadas sobre qual das seis cartas/descrições que tinham recebido era a atribuída ao parente/amigo.
No fim, das 94 pessoas que enviaram fotos de parentes ou amigos falecidos, 46 receberam o material produzido pelos médiuns para análise, e 39 responderam aos pesquisadores. Dos que avaliaram as cartas, 70,8% deram nota zero (“tenho certeza de que esta não é a carta do meu amigo/parente”) para sua carta-alvo. Com as descrições o resultado não foi muito diferente: 32% deram nota zero (“tenho certeza de que esta descrição não se refere ao meu amigo/parente”) e 44% deram nota 1 (“provavelmente essa descrição não se refere ao meu amigo/parente”) à sua descrição-alvo. Quanto à checagem de informações factuais presentes nas cartas ou descrições, não houve diferença significativa na comparação entre os “textos-alvo” e os “textos-controle”. Em outras palavras, pelo menos essas cartas do além parecem ter destinatário desconhecido. E nem podemos falar de uma amostragem cética em relação ao fenômeno: quase metade dos consulentes se declarou espírita, e quase 90% disseram acreditar na imortalidade da alma e na possibilidade de comunicação mediúnica.
Os autores do estudo têm três hipóteses para explicar os resultados. A primeira é a inexistência do fenômeno mediúnico, ao menos no que diz respeito à psicografia; quem alega poder redigir cartas ditadas pelos mortos ou é um farsante ou é alguém de boa fé, mas que pode desde viver no autoengano até sofrer de perturbações psíquicas como alucinações. A segunda possibilidade é a de que há, sim, médiuns capazes de psicografar cartas de falecidos, mas que aqueles médiuns participantes do estudo não tinham essa habilidade. E, por fim, a terceira hipótese é a de que todas as circunstâncias “artificiais” em que as sessões de psicografia ocorreram afetaram a capacidade mediúnica – em condições normais, por exemplo na presença dos parentes/amigos da pessoa falecida, o médium teria conseguido se comunicar com os mortos e produzir textos reconhecidos como de autoria dos falecidos. Lembremos que, dos primeiros quatro médiuns procurados pelo Nupes e que não quiseram participar da pesquisa, três alegaram exatamente que não seriam capazes de estabelecer contato com as pessoas falecidas sob as condições listadas no protocolo.
Esta última hipótese é a que os pesquisadores analisam de forma mais extensa no artigo, ressaltando ainda uma série de outras diferenças entre o experimento e o dia a dia da atividade de médiuns – por exemplo, o artigo afirma que na maioria dos casos de psicografia quem pede a ajuda dos médiuns são pais enlutados esperando por uma mensagem dos filhos, especialmente no caso de adolescentes e jovens mortos, mas no estudo, mães e pais, somados, correspondiam a 18,3% dos consulentes. Alexander Moreira-Almeida, coordenador do Nupes-UFJF e membro do time que realizou a pesquisa, diz que nenhuma das três possibilidades deve ser descartada, mas também dá mais destaque à questão das condições em que as sessões foram realizadas. “Aplicamos sem modificação um protocolo bem rigoroso desenvolvido em outro contexto, outra cultura, mas que foi recusado por médiuns mais experientes na produção de cartas. Precisamos achar um caminho do meio”, afirma o psiquiatra.
Moreira-Almeida e o artigo dos pesquisadores apontam algumas possibilidades, entre as quais permitir que os parentes/amigos dos falecidos participem das sessões de psicografia – os pesquisadores haviam descartado essa participação na pesquisa para evitar que, no caso das descrições orais, o médium pudesse captar uma espécie de “feedback imediato” por meio das reações dos consulentes. Mas, no caso das cartas, essa situação estaria evitada. A presença dos parentes foi um dos aspectos ressaltados pelos médiuns que se recusaram a participar do estudo, já que eram justamente os familiares ou amigos do falecido que proporcionariam o tipo de “conexão” que permitiria a produção das mensagens. Um outro lado deste “caminho do meio”, necessário até por questões éticas, seria deixar todos os envolvidos cientes de que estariam participando de um estudo. Moreira-Almeida disse que já existe uma outra pesquisa sendo conduzida, também no Nupes, em condições mais próximas às de uma sessão de psicografia comum.
Mas tentar encontrar evidências do fenômeno da psicografia não cai em uma questão repetida inúmeras vezes quando falamos de ciência e fé, a de que não se deve buscar provas do sobrenatural no laboratório? Moreira-Almeida responde dizendo que, primeiro, será preciso definir o que é “sobrenatural”: “Nós pensamos em ‘sobrenatural’ como algo que vai além da natureza, mas o que é a natureza? É apenas a matéria, ou podemos ampliar o conceito para tudo o que existe no universo? A consciência, a mente, não são componentes da natureza? Muitos autores como William James e Thomas Nagel defendem o que se chama de ‘naturalismo expandido’, e eu vou nessa linha”, diz o coordenador do Nupes. “Não acho que estejamos indo atrás do sobrenatural. Mesmo que se trate de algo invisível, tem implicações empíricas que podem ser detectadas e buscamos leis que regem seu funcionamento. Se essas pessoas têm experiências espirituais as mais variadas, e se essas experiências têm implicação empírica, consequências que podem ser observadas, podemos, enquanto cientistas, buscar entender esses fenômenos, em que condições ocorrem, e se existe alguma lei detectável a partir disso”, completa.
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