Tenho um amigo, que também foi meu professor de Física muitos anos atrás, que diz ter calafrios sempre que vê alguma coisa com o adjetivo “quântico”. Fico pensando no que ele diria ao saber de um evento que ocorrerá em Curitiba e que está sendo bastante divulgado: o I Congresso Internacional Felicidade, Prosperidade, Abundância e Física Quântica, marcado para novembro na Ópera de Arame e realizado pela Escola Brasileira de Ciências Holísticas.
Duas das estrelas do evento são o líder religioso Sri Prem Baba e o físico e “ativista quântico” (olha aí!) Amit Goswami. Ambos são descritos como referências na “conciliação” ou “construção de pontes” entre ciência e espiritualidade. Pois então: o minicurrículo de Sri Prem Baba no site do congresso diz que ele “desenvolveu um método de autoconhecimento chamado Caminho do Coração”, para que “possamos ser canais do amor divino através da manifestação dos nossos dons e talentos”. Tem sua beleza, e pode até ser que sirva mesmo para algumas ou muitas pessoas. Mas não tem absolutamente nada de ciência aí.
Caso mais complicado é o de Goswami, que liga física quântica e desenvolvimento espiritual (veja aqui os sites dele em inglês e português), e já escreveu livros com os sugestivos títulos de Economia Quântica, Criatividade Quântica e O ativismo quântico pode salvar a civilização. Um “sequestro” de um campo sério da ciência para outras finalidades, dizem dois físicos com quem conversei.
“A física quântica foi desenvolvida no começo do século 20 para explicar os fenômenos físicos que acontecem no mundo microscópico. Os físicos eram capazes de explicar fenômenos físico-químicos e radioativos em nível macroscópico com leis empíricas, mas faltavam leis mais fundamentais, que partissem de primeiros princípios, para explicar tais fenômenos. A física quântica preencheu essa lacuna, dando explicações elegantes para os fenômenos macroscópicos a partir de princípios físicos para o mundo microscópico”, explica o astrofísico Alexandre Zabot, professor da Universidade Federal de Santa Catarina. Basicamente, física quântica é isso (e já não é pouca coisa). “Fenômenos psíquicos, curas de doenças ou bem-estar do ser humano jamais foram objeto de trabalho dos físicos”, acrescenta Zabot.
Existe, sim, em minha opinião, um anseio natural das pessoas pelo transcendente. O problema é usar esse anseio para promover “conciliações” entre ciência e fé que são totalmente forçadas. E, nesta época em que o discurso científico é altamente respeitado, praticamente um pilar da sociedade atual, ele corre o risco de ser capturado. “Esse evento me parece bem revelador de um fenômeno muito comum: o uso das hard sciences para ‘justificar’ qualquer bobagem”, explica Laerte Sodré Júnior, diretor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP. “Infelizmente é a esse papel que se presta o Amit Goswani: com seus livros, vende bobagens fantasiadas de ciência e, pelo visto, conseguiu sócios no Brasil”, continua o doutor em Astronomia, que até tentou dar uma chance a Goswami: “Comecei a ver um filme com ele, mas desisti depois de dois minutos, tal o nível de enganação”. Zabot arremata: “É uma boa atitude de prudência duvidar da honestidade de pessoas que prometem soluções mágicas usando instrumentos criados para outros fins. Especialmente quando cobram tão caro [a inscrição do congresso custa de R$ 799 a R$ 999, e a organização afirma que se o valor arrecadado superar o custeio do evento, o excedente irá para programas sociais]. O simples fato de haver físicos com doutorado entre eles não lhes dá a credibilidade necessária, pois a comunidade científica não apoia essas doutrinas exóticas”.
Enfim, o congresso tem lá outras palestras e outros temas que não me dizem respeito (embora eu tenha ficado com a pulga atrás da orelha com uma palestra envolvendo neurociências) e, como eu disse, até podem ser de grande valia para quem vai ao evento. Meu problema é com essa mistureba entre física quântica e espiritualidade. Quem acompanha o blog sabe que eu defendo o diálogo, a cooperação e a conciliação entre ciência e fé, mas sem subverter (ou até perverter, por mais forte que isso soe) nem uma, nem outra.
(Um mea culpa: sim, o recesso do blog demorou mais do que deveria; era para ter durado só o mês de maio, quando estive de férias. Peço desculpas, e já aviso que vem outro recesso aí, coincidindo com os Jogos Olímpicos. Até lá, vamos tentar dar um gás no blog.)
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