Esqueçam a censura (ou não, dependendo do seu ponto de vista) às biografias: o tema que mobiliza o universo desde o fim de semana passada é o resgate dos beagles no interior de São Paulo. Já me pediram um post sobre o tema, e é curioso, pois uns tempos atrás eu realmente procurei algumas pessoas para saber a posição de certas religiões sobre o uso de animais em pesquisas, mas o post nunca se concretizou. Acho que esse é o momento para tratar do assunto.
Pelo que apurei, existe uma distinção bem clara sobre o uso de animais para testar, por exemplo, cosméticos (aí existe um consenso maior, de oposição), e o emprego dos bichos em testes para a indústria de medicamentos, que é onde o debate fica mais interessante por causa da relevância do benefício para a humanidade. Mas não é um assunto assim tão fácil, em que se pode estabelecer regrinhas de “contra” e “a favor”, e estamos conversados. Ele se baseia na visão que cada religião tem sobre o papel do ser humano na criação, e na relação entre o homem e os demais seres. “Se tratarmos da questão sob o sistema pode/não pode, estamos nos abstendo de uma responsabilidade maior que é reconhecer os motivos que levam à pesquisa e os objetivos que esse procedimento pretende atingir. Quando se tem conhecimento da motivação ou do problema gerador da pesquisa e os objetivos e soluções que visa atingir, então pode-se refletir e avaliar a legitimidade de uma prática qualquer”, diz o teólogo Gelci André Colli, que foi professor da Faculdade Teológica Batista do Paraná.
Cristianismo
Logicamente, a Bíblia não diz nada sobre pesquisas com animais. Mas, como recorda Colli, o texto sagrado cristão estabelece alguns princípios dos quais se pode deduzir uma abordagem cristã para a questão. “A criação é planejada e ordenada. Os elementos da criação têm papéis a cumprir para a manutenção da harmonia original na criação, e parece que uma espécie de hierarquia entre os elementos da criação, especialmente no que diz respeito à criação do ser humano”, afirma, ressaltando que, no relato da Bíblia, o homem é criado à imagem e semelhança de Deus, o que não ocorre com os outros animais. “Esse particular, a imago Dei, já faz do ser humano um ser diferente na criação. Mas a especialidade humana sobressai ainda mais com o mandato de domínio que Deus, o criador, estabelece sobre o ser humano. Ele decreta que o ser humano deve dominar sobre a criação, os peixes, as aves, animais domésticos, selvagens, répteis”, diz o teólogo.
O problema, ao longo dos séculos, foi entender no que exatamente consistia esse domínio. “Por um bom tempo a interpretação desse mandato de dominação indicava que o ser humano podia explorar a criação de Deus para seu sustento e até desenvolvimento, como podemos averiguar na Revolução Industrial, em que o progresso acelerou-se à custa da exploração dos recursos naturais sem a devida preocupação com a sustentabilidade”, afirma Colli. No entanto, essa já não é a interpretação majoritária. “Atualmente tem se interpretado que o domínio dirigido ao ser humano sobre a criação indica muito mais alguém que guarda e cultiva do que um explorador. Aqui, a imago Dei parece ser fundamental para a compreensão da relação entre ser humano e natureza. Ao ser criado à imagem e semelhança de Deus, ao receber a imago Dei, o ser humano recebe uma posição especial na criação; mas, que no que tange à questão debatida, circunscreve-se ao papel de um administrador/jardineiro que se responsabiliza em fazer a gestão/preservação de toda a vida criada por Deus”, diz o teólogo. Leitores antigos do blog vão encontrar esse mesmo pensamento nos papas Francisco e Bento XVI, no patriarca ortodoxo Bartolomeu I e em declarações de Dave Bookless, líder do grupo protestante A Rocha.
Colli explica as funções do homem dentro desse novo entendimento de “guarda da criação”: “ele deve conduzir seu proceder nas vias dos direitos e deveres da condição recebida na criação. Tem o direito de decidir e usufruir dos benefícios/frutos sobre a criação (Gn 1,29 e 2,16-20). Tem o dever de cuidar e guardar a criação de Deus, mas não como soberano, pois também é criatura e não criador. Isso significa que esse cuidar e guardar deve ser realizado à moda de Deus, ou melhor, sob a vontade de Deus. E o Deus da Bíblia é o Deus criador, sustentador e salvador da vida”, afirma. E onde isso nos leva, quanto à pesquisa com animais? “Parece que é permitido, sim, o uso de animais em pesquisa cientifica desde que sejam guardados os princípios legítimos da vida criada por Deus. Nesse sentido, a utilização de animais em pesquisas científicas que implicam algum prejuízo, físico ou vital, ao ser vivo só são legitimadas teologicamente a partir da interpretação da Bíblia se for inexoravelmente necessária, inexequível de outra forma ou meio, motivada pela busca de um bem comum e de necessidade vital ao ser humano, e se não atender a interesses financeiros em detrimento do valor da vida”, conclui.
O Catecismo da Igreja Católica vai em toada parecida, embora tenha uma única frase sobre a pesquisa com animais: “Os experimentos médicos e científicos em animais são práticas moralmente admissíveis, se permanecerem dentro dos limites razoáveis e contribuírem para curar ou salvar vidas humanas.” (n. 2.417) No entanto, essa frase está dentro de um contexto maior sobre a finalidade dos animais (“Os animais, como as plantas e os seres inanimados, estão naturalmente destinados ao bem comum da humanidade passada, presente e futura”, diz o n. 2.415), e o Catecismo inclusive ressalta, logo após a citação que eu trouxe, que “É contrário à dignidade humana fazer os animais sofrerem inutilmente e desperdiçar suas vidas” (n. 2.418).
O padre Celso Nogueira, dos Legionários de Cristo e especialista em ciência e fé, dá um pouco mais de detalhes sobre o que são os “limites razoáveis” dentro dos quais a pesquisa com animais seria moralmente lícita, segundo a Igreja Católica: “o limite ético é usar os animais tanto quanto ajudarem a salvar vidas humanas. Em caso de ser dispensável o uso do animal (pense, num futuro, em um computador que fosse capaz de simular a reação do organismo frente a certos medicamentos), já não seria correto fazer animais sofrerem”, diz o padre Celso. “O ser humano infelizmente ainda não pode dispensar o emprego de animais em experimentos, mas não deveria usá-los de qualquer jeito (e me consta que há um código deontológico para isso)”, acrescenta.
Em janeiro deste ano, o padre Paulo Ricardo já tinha feito um vídeo sobre o tema, em que ele elabora a posição católica sobre o tema, recordando os mesmos trechos do Catecismo e acrescentando o que diz Santo Tomás de Aquino sobre a relação entre o homem e a criação. Confiram:
Hinduísmo
As religiões orientais costumam ser conhecidas, entre outros aspectos, justamente pela maneira de encarar os demais seres vivos. Por isso, pedi ajuda a Suhag Shukla, da Hindu American Foundation, que selecionou o depoimento de três médicos e cientistas, com posições um pouco distintas, o que, segundo ela, reflete a diversidade de opiniões dentro do Hinduísmo. Antes de ir aos relatos, no entanto, é interessante ler a declaração “Hinduísmo e o tratamento ético dos animais”, emitido em conjunto entre a HAF e a Humane Society. Ali estão dois conceitos centrais para a nossa discussão: o de carma é mais conhecido entre nós, e trata da recompensa ou punição dada por cada um de nossos atos (como a eliminação de um ser inocente); e o princípio do ahimsa (não violência), essencial na relação do homem com os demais seres vivos.
O urologista pediátrio Aseem Shukla diz que médicos hinduístas vivem um dilema durante a faculdade e em seus projetos de pesquisa, diante da necessidade de sacrificar animais, já que existe um conflito com a adesão estrita ao ahimsa. “No entanto, como em qualquer preceito hinduísta, um praticante é exortado a agir de acordo com o melhor interesse da humanidade. Sabemos que a cura da pólio, da raiva, da varíola e de vários tipos de câncer que matam milhões só foram possíveis graças ao nobre sacrifício de inúmeros animais, grandes e pequenos. Se um cientista ou médico promove essa nobre pesquisa em animais quando não há substituto artificial ou simulador disponível, precisa fazê-lo não pela fama ou pelo dinheiro, mas em um espírito de serviço à humanidade, sem esperar recompensa. Se um médico age para minimizar o sofrimento e o sacrifício de animais com essa reta intenção, toda a humanidade compartilha essa dívida cármica e precisa agir para compensá-la por meio da nobre intenção de servir a natureza e o mundo animal de outras formas”, afirma. Reparem na frequência com que Shukla usa o termo “nobre”; é um conceito importante na sua abordagem sobre como lidar com as pesquisas com animais.
Já o médico Mihir Meghani, que faz atendimentos de emergência, tem uma abordagem mais restritiva. “Eu, pessoalmente, não tomo vacinas feitas com produtos animais, e abomino ter de tomar qualquer remédio que tenha sido testado em animais, o que significa quase todo medicamento. Testes em animais para beneficiar humanos são uma prática que eu, pessoalmente, não apoio. Não creio que a vida humana seja mais importante que qualquer outra vida. Quando agimos assim, nos beneficiamos à custa de outra vida e por isso, sim, pagamos uma punição cármica”, afirma.
O anestesiologista pediátrico Arvind Chandrakantan começa enfático, mas apresenta outras ponderações. “Depende da escola do Hinduísmo à qual você pertence, mas o uso de animais em pesquisa é estritamente proibido por causa do ahimsa. Isso vale mesmo para animais usados em benefício da humanidade, não apenas aqueles usados para experiências com cosméticos ou medicamentos. Isso leva a dilemas éticos para médicos hinduístas, forçados a conciliar o carma do animal com o dharma (dever) de fazer o bem à humanidade. Infelizmente, há poucas soluções alternativas. Como vamos fazer testes em humanos sem ter a menor ideia sobre a validade disso?”, questiona.
Budismo
As fontes budistas que encontrei (na falta de alguém que pudesse dar entrevista ao blog) adotam uma posição contrária à morte de animais em pesquisas, como se pode concluir deste FAQ sobre assuntos de vida ou morte. O primeiro capítulo da parte II deste livro em PDF ainda explica como, na visão budista, deve ser entendido o relacionamento entre homem e animal – vejam especialmente a página 39 (mas ignorem as páginas seguintes, que compram o discurso furado de que a tradição judaico-cristã incentiva a destruição do meio ambiente). A página 84 do livro ainda faz uma menção breve a “experimentos letais” em animais. Um glossário budista afirma, na página 389 (verbete “killing”), que os que fazem experiências científicas em animais, frequentemente privando esses animais da vida, arriscam ter um mau carma. No entanto, a morte das cobaias seria justificável em um caso: apenas se fosse a única maneira de obter informação vital para a saúde e bem-estar dos seres humanos. No entanto, essa visão implica, de alguma forma, que o bem-estar humano estaria acima do bem-estar animal. Não vejo como seria possível conciliar isso com os demais conceitos explicados acima, de igualdade ontológica entre homem e animal. Vale lembrar que não consegui encontrar informações sobre a avaliação moral, segundo o Budismo, de experiências não letais em animais.
Como vocês perceberam, nem todas as principais religiões estão representadas aqui. Ainda irei atrás de representantes do Espiritismo e do Islamismo.
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