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“A natureza e suas leis estavam escondidas na noite. Deus disse ‘faça-se Newton’, e tudo se tornou luz”, diz o epitáfio escrito por Alexander Pope para Isaac Newton. Sendo uma homenagem póstuma, só podemos imaginar o que pensaria disso quem afirmara que, para enxergar mais longe, havia se apoiado nos ombros de gigantes. Pope certamente estava errado em seu elogio quase hagiográfico, pois Newton não havia sido o “marco zero” da ciência; mas também se engana quem acha que os “gigantes” eram apenas aqueles que antecederam o descobridor da gravidade em algumas poucas décadas: Galileu, Kepler, Copérnico, Huygens, Descartes, Boyle. Na verdade, houve muitos outros gigantes durante a época que a propaganda iluminista descreve como a “noite” (para ser generoso, porque o termo mais corrente é “trevas” mesmo). Um deles, ironicamente, dedicou-se, entre muitos outros temas, à luz. É Roberto Grosseteste, que viveu entre os séculos 12 e 13, foi bispo de Lincoln, na Inglaterra, e escreveu uma série de tratados que podemos, por que não?, chamar de “científicos”. Dois deles, De luce seu de inchoatione formarum (“Sobre a luz ou o começo das formas”) e De finitate motus et temporis (“Sobre a finitude do movimento e do tempo”), foram reunidos pela Editora Concreta em um volume bilíngue chamado A luz, o tempo e o movimento, de cujo financiamento coletivo participei em 2016.
O tratado sobre a luz é um texto de cosmogonia. Nele, Grosseteste se propõe a explicar o surgimento e a expansão do universo empregando a luz como o elemento-chave. “A primeira forma corporal, chamada por alguns corporeidade, é a luz. Pois a luz, per se, difunde-se a si mesma por toda a parte”, inicia o bispo. A luz, “multiplicando-se por si mesma, infinitas vezes, em todas as direções, e propagando-se uniformemente por toda parte, foi no princípio do tempo estendendo a matéria, da qual não podia separar-se, e espalhando-a consigo numa massa tão grande quanto é a máquina do mundo”, continua, recordando-nos que houve uma época em que não se entendia “máquina do mundo” com o sentido mecanicista que lhe foi atribuído posteriormente. Luz e matéria se expandindo a partir de um ponto central – isso não lhe parece familiar, caro leitor? Não é à toa que muitos vejam Grosseteste como um precursor do Big Bang.
E o bispo continua, descrevendo como essa expansão ocorre até um ponto em que “as partes extremas da matéria se estendem mais e ficam mais rarefeitas do que as partes internas próximas ao centro”. Por sua vez, o firmamento “expande sua própria luminosidade desde cada parte sua para o centro do todo”, e desse “vaivém” surgem as esferas celestes que formavam o universo conhecido na época de Grosseteste, além dos elementos – fogo, ar, água e terra. “A Terra é, com efeito, todos os corpos superiores pela congregação, em si mesma, das luminosidades superiores”, escreve Grosseteste, revelando nas entrelinhas (e mesmo de forma mais explícita às vezes) aquela convicção de que Deus havia criado um mundo inteligível, “com medida, quantidade e peso” (Sb 11,21), regido por leis que o homem era capaz de descobrir.
Mesmo quando trata de realidades naturais, o bispo de Lincoln faz metafísica, está consciente disso e nem ele nem nenhum de seus contemporâneos viam o menor problema nisso; somos nós, os modernos, que torcemos o nariz para esse tipo de coisa
Já no segundo tratado, o objetivo de Grosseteste é se contrapor à ideia aristotélica de que o universo é eterno – e, no processo, se afasta também de Santo Tomás de Aquino, para quem, embora tenhamos como certo que o universo foi criado, pois é o que nos diz a revelação divina, não seria absurdo que ele tivesse existido desde sempre. “É falso que ‘todo instante é continuação do passado e do futuro’. Existiu um instante primeiro e talvez existirá um último no tempo, assim como existem pontos no fim de uma linha, apesar de Aristóteles, Averróis e outros comentadores considerarem isso inconveniente”, argumenta o bispo de Lincoln. O leitor certamente já se fez ou já ouviu questões do tipo “mas o que aconteceu antes da criação/do Big Bang/etc?”, às vezes feitas para desacreditar a noção de criação divina; este é o tipo de dilema que, em uma forma bem mais elaborada intelectualmente, Grosseteste se propõe a resolver, recorrendo às noções aristotélicas de potência e ato.
Os tratados são bem curtinhos, ambos têm nove páginas cada um, considerando apenas a tradução para o português (a edição, como afirmei acima, é bilíngue). Até por isso, A luz, o tempo e o movimento conta com uma longa e interessante apresentação do físico Raphael de Paola, que começa recuperando o lugar correto dos escolásticos, evitando dois extremos: o de achar que a história da ciência se resume a “havia os gregos, depois o vazio, e depois a Revolução Científica” (erro bastante comum); e o de achar que “os escolásticos já compreenderam tudo que havia para compreender, agora estamos só refinando os detalhes” (bem mais raro, mas que também já ouvi por aí). Mas o âmago da apresentação é uma crítica ao divórcio moderno entre física, matemática e filosofia (mais especificamente, a metafísica), divórcio esse que era impensável nos temos de Grosseteste e que, de certa forma, atrofiou nossa capacidade de compreender bem a realidade. Por fim, De Paola lista dois paralelos entre o que Grosseteste afirma nos tratados e a física contemporânea: exatamente o caso do Big Bang – que faz muito sentido, e por isso não devemos encaixar naquele erro de forçar a barra atribuindo tudo aos escolásticos – e as teorias sobre o comportamento da luz em Einstein. Apesar da linguagem acessível, temo que eu tenha apenas arranhado a superfície da coisa; tenho a impressão de que eu fruiria ainda mais a apresentação se tivesse conhecimentos mais profundos de física ou matemática – portanto, culpa minha, não do autor da apresentação.
Ler Grosseteste é conferir em primeira mão aquilo de que Andrew Briggs fala ao defender que, durante boa parte da história, a “última curiosidade” puxou consigo a “penúltima curiosidade”; ou o que Peter Harrison descreve no seu Os territórios da ciência e da religião como uma harmonia entre scientia e religio, que na época de Grosseteste eram entendidas não como corpos de conhecimento, mas como atitudes interiores. Mesmo quando trata de realidades naturais, o bispo de Lincoln faz metafísica, está consciente disso e nem ele nem nenhum de seus contemporâneos viam o menor problema nisso; somos nós, os modernos, que torcemos o nariz para esse tipo de coisa. A um amigo, cientista e bastante religioso, que me perguntou uma vez, com toda a boa fé e sinceridade, por que “desenterrar” textos como os de Grosseteste, agora posso responder que se trata, no fim, de saber de onde viemos em termos intelectuais. Desfazer dois mitos numa só tacada – o de que a época medieval foi um inverno glacial em termos de produção de conhecimento que poderíamos chamar “científico”, e de que ciência e religião sempre viveram em conflito irreconciliável – já bastaria para justificar uma edição como essa da Concreta.
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