Acreditem ou não, passou completamente batido por mim o quinto aniversário do Tubo de Ensaio, comemorado no início de setembro. E olhem que sou bom com datas! Em minha defesa, posso dizer que o “jubileu de madeira” do Tubo se deu exatamente enquanto eu estava na Inglaterra. A minha intenção para o aniversário era publicar um material especial: esta entrevista que está abaixo. A dra. Robin Smith, CEO da NeoStem, empresa do ramo de terapia celular, e o monsenhor Tomasz Trafny, chefe do departamento de ciência e fé do Vaticano, conversaram comigo, por telefone, da sede da NeoStem em Nova York, algumas semanas atrás. A empresa e o Vaticano estão juntos desde maio de 2010, em uma parceria assinada entre a Stem for Life Foundation (o braço caritativo da NeoStem) e o STOQ Internacional, projeto que começou com várias universidades católicas colaborando na pesquisa sobre ciência e fé, e que depois foi “encampado” pelo Vaticano por meio do Pontifício Conselho para a Cultura. A parceria tem o objetivo de promover a pesquisa com células-tronco adultas, em consonância com os valores de respeito à vida humana desde a concepção tão caros à Igreja Católica. Além do impulso à pesquisa, a parceria já rendeu um livro e dois congressos realizados no Vaticano. Este é um exemplo acabado de cooperação entre ciência e religião, e, permitam-me dizer, uma bela resposta aos que acusam a Igreja Católica de ser insensível ao sofrimento de doentes cuja esperança está nas terapias celulares. Confiram a íntegra da nossa conversa; uma versão mais curta foi publicada no caderno Mundo, da Gazeta do Povo de hoje:
Como se produziu uma parceria como esta, que muitos veem como incomum?
Mons. Trafny: Normalmente os departamentos do Vaticano não estabelecem parcerias com companhias privadas. Mas queríamos explorar algumas questões específicas, como o potencial das células-tronco adultas, o que exigia uma colaboração mais próxima não só com quem tivesse expertise no tema, mas que também pudesse ajudar com recursos. Então, em vez de fazer isso nós mesmos, pedimos conselho a pessoas que estão na linha de frente da pesquisa e das descobertas nesse ramo. O motivo pelo qual começamos a trabalhar com a NeoStem é o fato de que buscávamos não apenas um parceiro qualquer, mas um parceiro que cumprisse alguns requisitos que tínhamos. Você sabe que temos algumas exigências de nível ético; buscávamos parceiros que compartilhassem da nossa visão, não apenas do ponto de vista científico, mas principalmente do ponto de vista moral. Em primeiro lugar, eles têm uma plataforma ética muito clara: nunca fizeram pesquisa com embriões, e nem querem fazê-lo. Em segundo lugar, é muito importante o fato de eles compartilharem conosco o interesse em um tema muito específico que estamos explorando: o potencial impacto cultural da pesquisa com células-tronco na medicina. É muito difícil encontrar universidades ou instituições que vão além da pesquisa técnica e estejam interessadas nas implicações culturais de seu trabalho. Por muito tempo buscamos quem o fizesse, e encontramos isso na NeoStem. Eles estão muito bem qualificados como pesquisadores, compartilham nosso interesse cultural e têm princípios éticos claros.
Robin Smith: Quando as pessoas falam de células-tronco, frequentemente há confusão. A maioria pensa de imediato nas células embrionárias porque, durante boa parte dos anos 90, a imprensa priorizou a controvérsia criada pelo debate sobre a pesquisa com embriões. Como essa é a única impressão que boa parte do público tem sobre células-tronco, muitos não sabem que as células-tronco adultas são algo diferente, são células retiradas do nosso próprio corpo com nosso consentimento, ou seja, não há implicações éticas associadas ao seu uso. Então, essa parceria entre a Fundação Stem for Life e a STOQ Internacional (ambas entidades sem fins lucrativos), a NeoStem, que é líder no mercado emergente de terapias celulares, e o Pontifício Conselho para a Cultura é única, e a primeira desse gênero. Temos uma tremenda oportunidade de conscientizar uma audiência muito grande sobre a pesquisa científica que vem sendo feita com células-tronco adultas, em que pé estamos atualmente em relação a isso, e quão importantes as terapias celulares em geral serão no futuro. Essa parceria ajuda a espalhar a mensagem de que há uma mudança em curso na medicina, na direção de usar células do nosso próprio corpo para desenvolver terapias que tratem doenças crônicas.
Hoje, quão conscientes os cientistas estão a respeito das questões éticas que envolvem a pesquisa com células-tronco embrionárias?
Robin Smith: Há tantos cientistas brilhantes no mundo, mas, como o dr. John Gurdon mencionou na última conferência que tivemos no Vaticano, ele e muitos de seus colegas provavelmente não consideraram algumas das implicações éticas envolvidas na ciência das células-tronco. Os cientistas costumam focar tanto a parte técnica do seu trabalho que não necessariamente consideram outras questões. Por isso é importante alimentar esse tipo de debate. Quando se tem mais informação, é possível tomar decisões mais embasadas. E, independentemente de quais são suas crenças, entender perspectivas diferentes e respeitar essas diferenças ajuda a levar a ciência adiante.
John Gurdon, aliás, ganhou o Nobel de Medicina por sua pesquisa com células-tronco adultas. Considerando que se fala muito mais da pesquisa e do potencial das células embrionárias, vocês se sentiram “justificados” quando o prêmio foi anunciado?
Mons. Trafny: Quando buscávamos palestrantes para nossa conferência, queríamos os melhores conferencistas que podíamos obter. Convidamos o dr. Gurdon para que pudéssemos ouvi-lo sobre seu trabalho e sobre suas conquistas, e não para esfregar nada na cara de ninguém. Ficamos muito felizes por ele ter aceitado e ter vindo para o evento. Não havia nenhuma ideologia ou segundas intenções por trás do convite, apenas queríamos que ele abordasse os temas relativos à sua pesquisa, e reconhecer sua determinação. Por anos, por décadas, ele acabou isolado por seus colegas, as pessoas não acreditavam em sua pesquisa, mas ele foi muito determinado. Diria que ele foi muito resoluto em seguir aquilo em que acreditava, ser fiel à sua pesquisa, e é assim que se consegue resultados. O Nobel que ele ganhou é o melhor sinal da importância de ter uma boa ideia e ser forte o suficiente para persegui-la, tendo dados suficientes para comprová-la. Foi por isso que o convidamos.
O Vaticano e a NeoStem já têm algum tempo de parceria. Ela chegou a mudar as concepções de cientistas do seu convívio que que ainda podem ver “ciência” e “Vaticano” como entidades que não se misturam?
Robin Smith: Essa tem sido uma colaboração maravilhosa. Temos gerado diálogo entre pesquisadores de vários campos de estudo ao redor do mundo. Estamos focados em nossa missão: educar as pessoas sobre os avanços nas pesquisas com células-tronco adultas e ajudar a levantar recursos para financiar testes clínicos. Também estamos trabalhando com o público estudantil, para que as próximas gerações possam entender o poder e o potencial da terapia celular. Nossa parceria fez a discussão avançar – estamos encorajando o diálogo aberto e a colaboração para fazer a tecnologia avançar, tanto por meio do livro The Healing Cell: How the Greatest Revolution in Medical History is Changing Your Life, que o monsenhor Trafny, o dr. Max Gomez e eu escrevemos, quanto por meio de outras iniciativas educacionais.
Como poderíamos resumir, até agora, o que foi conseguido com a pesquisa com células-tronco adultas? Que terapias já estão disponíveis para humanos, e quais podem se tornar realidade num futuro próximo?
Robin Smith: Há 4,7 mil testes clínicos em curso que usam terapias com células-tronco adultas, e percebemos o ânimo entre os colegas à medida que mais e mais dados são publicados em revistas acadêmicas, mostrando o avanço das tecnologias celulares. Acreditamos que, se você olhar para a indústria como um todo, conseguirá ver um grande progresso sendo feito. Por exemplo, na medicina cardiovascular há uma grande empolgação com as possíveis terapias. Há alguns produtos de terapia celular já aprovados em ortopedia, como o Carticel, da Genzyme, para a indústria de cartilagens articulares. Para mim, os dados mostram a animação em torno dos avanços em várias frentes clínicas, e esperamos ver ainda mais disso no futuro.
A pesquisa com embriões pode dar resultados similares no futuro, ou mais cedo ou mais tarde chegará a um beco sem saída?
Mons. Trafny: Não sabemos. É até possível que a pesquisa com células-tronco embrionárias dê resultados, mas a verdadeira questão é se é correto fazer tudo o que seja tecnicamente possível. E estamos fazendo essa pergunta aos cientistas. Claro que muitos não compartilham da sensibilidade moral e ética dos cristãos e dos católicos nesse tema específico, mas de qualquer forma as pessoas deveriam pensar sobre as potenciais consequências de agredir a vida humana. Se não temos nenhum limite, que diferença faz destruir a vida em seu início, ou no meio, ou no fim? Então, há coisas que, de um ponto de vista meramente técnico-científico, são possíveis, como usar embriões em pesquisa, mas queremos que a sociedade pergunte a si mesma se podemos fazer isso, de um ponto de vista moral. Essa é a questão.
Quando falamos de bioética, qual é a sua visão sobre a relação entre ciência e fé? Quais os limites para a ação de igrejas e grupos religiosos na esfera pública? Eles poderiam, por exemplo, pressionar por uma legislação restritiva em relação a práticas como o aborto, a eutanásia ou a pesquisa com embriões?
Mons. Trafny: A sociedade ocidental foi construída sobre a ética cristã, e isso é algo que mesmo não católicos reconhecem. Há um livro maravilhoso de outro prêmio Nobel, Richard Feynman, chamado The meaning of it all, uma coleção de palestras que ele deu na Universidade de Washington. Ele diz que temos de reconhecer que a ética cristã é um dos grandes patrimônios que temos, e que nas sociedades ocidentais é sob a lógica da ética cristã que agimos. Então, se tudo está construído sobre essa base, é natural que os cristãos levantem questões éticas, inclusive em relação a avanços científicos. Não nos esqueçamos de que pessoas como J. Robert Oppenheimer e o próprio Feynman trabalharam no desenvolvimento da bomba atômica e depois perceberam quão nocivo e eticamente questionável era o seu trabalho. Nós deveríamos ter o direito de levantar questões morais e trazê-las para a esfera pública.
Robin Smith: Para a ciência avançar, precisamos respeitar as crenças das pessoas, sejam elas religiosas, éticas ou de alguma outra natureza. É importante considerar as diferentes perspectivas. Mas, no fim, acreditamos que é o potencial de combater o sofrimento e as doenças crônicas que vai convencer as pessoas e nos ajudar a levar adiante a pesquisa com células-tronco. E, embora essa seja uma parceria com a Igreja Católica, esse potencial deveria ser compreendido por todos, independentemente de filiação religiosa. Eu mesmo sou judia, mas me concentro no que podemos fazer para melhorar a humanidade e reduzir o sofrimento causado pela doença.
Como essa parceria afetou a sua visão pessoal sobre o modo como a Igreja Católica vê a ciência?
Robin Smith: É incrível ver como o Vaticano e o Pontifício Conselho para a Cultura têm sido tão abertos a ajudar as pessoas a entender a ciência, o valor de apoiar uma ciência ética, e o impacto cultural que as ciências terão no futuro. Para mim, tem sido um aprendizado em múltiplos níveis, especialmente em relação à capacidade que a Igreja Católica tem para influenciar a percepção das pessoas. Também aprendi muito sobre a importância da parceria com vários cientistas em todo o mundo para ajudá-los a compreender o valor de uma ciência feita eticamente, o impacto cultural dos avanços que vemos hoje, e o poder desses avanços para o futuro.
A última conferência sobre o tema no Vaticano não incluiu nenhum encontro com o papa Francisco, e também não houve nenhuma mensagem por parte dele aos participantes do encontro, ao contrário do que Bento XVI havia feito na primeira conferência. Vocês já tiveram a chance de encontrar o pontífice e conversar com ele sobre esses temas?
Mons. Trafny: Como você sabe, quando realizamos a conferência o papa Francisco tinha acabado de ser eleito, e seria muito difícil reorganizar a agenda dele e nossa. Mas o cardeal Gianfranco Ravasi [presidente do Pontifício Conselho para a Cultura] prometeu manter o papa informado sobre todos os desdobramentos. Estamos preparando um documento pós-conferência para levar ao Santo Padre, e obviamente queremos encontrá-lo e ouvir suas palavras e seu conselho sobre como deveríamos agir e sobre o que ele tem em mente em relação ao que há de mais importante para fazermos. Sabemos que ele é bem aberto e esperamos estar com ele em breve não só para apresentar o que fizemos, mas também o que pretendemos fazer.
Suponho que as expectativas são altas, quando se fala do papa Francisco e de bioética…
Mons. Trafny: (risos) Quando estamos falando de um papa, não é tanto sobre ter expectativas, mas sobre seguir seu ensinamento e prestar atenção a suas declarações sobre o valor da vida humana e sobre a situação dramática daqueles que são afetados por diversas formas de sofrimento. Todos sabemos que ele tem uma sensibilidade especial em relação aos que sofrem. Desse ponto de vista, acho que o papa vai não apenas apoiar nossa iniciativa, mas também dará ótimos conselhos e apontar direções concretas para tomarmos.
Em junho de 2012 vocês encontraram o papa Bento XVI. Como descreveriam o interesse do papa emérito pela ciência?
Mons. Trafny: O papa Bento é um grande teólogo, e ele precisou lidar por anos com essas questões relativas a pesquisa com células-tronco embrionárias e adultas quando foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Então, creio que para ele era natural apoiar a pesquisa com células-tronco adultas e nossa iniciativa porque ele estava muito consciente das implicações morais e éticas da pesquisa com embriões. Para ele, era fácil entender e se envolver com a questão. Como você sabe, o papa Francisco, por outro lado, vem de um ambiente mais pastoral, então levará um tempo para que ele se inteire das questões mais específicas, às vezes acadêmicas, mas que também têm um profundo impacto pastoral, moral e social.
Quais são as próximas etapas dessa parceria? Há a possibilidade de incluir outros grupos religiosos que também se interessam pela pesquisa com células-tronco adultas, ou estabelecer novas iniciativas?
Robin Smith: Certamente! Essa parceria é um grande modelo sobre o qual podemos construir ainda mais, com outros grupos, para ajudar a espalhar nossa mensagem. Como disse antes, estamos trabalhando em uma iniciativa global com o objetivo de fomentar a educação e as terapias celulares com a pesquisa com células-tronco adultas.
Mons. Trafny: Claro que queremos agir globalmente, e precisamos começar de algum lugar. O passo importante é reunir pessoas, e fazer com que nossos padres e bispos entendam o potencial da medicina regenerativa e da pesquisa com células-tronco. A conferência de abril serviu para isso; identificamos pessoas e pedimos que elas colaborassem conosco nisso. Agora, o próximo passo é chegar aos estudantes. Estamos organizando eventos, incluindo programas de “estudantes-embaixadores” e convidando alunos de várias universidades para participar das conferências. Estamos pensando em como atrair mais pessoas desse nível que desejem se envolver com nosso trabalho, então seguimos convidando universidades e pedindo que elas enviem alunos para fazer parte disso, de modo que tenhamos um bom padrão de ensino para os jovens. A partir disso, gostaríamos de expandir nossa atuação pública.
Robin Smith: Estamos conversando com educadores e universidades em todo o mundo para criar uma rede que inclua de cientistas a líderes religiosos, homens de negócios, ministros da Saúde e políticos. Queremos estabelecer um ponto focal para uma rede mundial de colaboradores. Começamos a fazer isso com nossa primeira conferência, em novembro de 2011, e expandimos o trabalho em abril deste ano, com a segunda conferência. Atraímos muitos cientistas, jornalistas de ponta como Meredith Vieira e Bill Hemmer, bem como políticos e desenvolvedores de políticas públicas, que vieram e discutiram por três dias sobre todas as diferentes perspectivas e os avanços científicos nessa área. Agora, essas pessoas estão ajudando a ampliar nossa rede e ela seguirá crescendo com cada atividade que organizarmos. Por isso publicamos The healing cell, com um prefácio do papa Bento XVI. Estamos mostrando ao mundo como a medicina do futuro começa hoje.
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