Como prometido quando saí de férias, trago uma recomendação de livro. Infelizmente não deu para terminar uma outra obra, do Carl Sagan; estou na metade. Mas convenhamos, nas férias é bom me distrair com outros assuntos – ainda li Os heróis, de Paul Johnson, e a fascinante biografia dos Beatles escrita por Bob Spitz.
Falecido em 2002, Stephen Jay Gould era paleontólogo e ajudou a derrubar leis que previam tempo igual nas escolas de certos estados norte-americanos para o evolucionismo (do qual é um grande entusiasta) e o criacionismo. Pilares do tempo, o livro que recomendo aqui, tem o sugestivo subtítulo Ciência e religião na plenitude da vida (Rocco, 2002). É um livro curto (menos de 200 páginas) e muito gostoso de ler, no qual Gould apresenta o seu modelo para a relação entre ciência e religião, o dos Magistérios não-interferentes (MNI) – pelo menos essa é a designação dada pelo tradutor. O original inglês, non-overlapping magisteria (Noma), talvez fosse melhor traduzido como “magistérios não-sobrepostos”, mas admito que “não-interferentes” também é fiel à ideia de Gould.
O princípio é descrito já no segundo capítulo do livro. Mas antes mesmo disso Gould afirma que a suposta guerra entre ciência e religião (os dois pilares do título) é “um debate que só existe na mente e nas práticas sociais das pessoas, e não na lógica ou na utilidade correta desses dois assuntos inteiramente diferentes e igualmente vitais” (p. 11). O autor, que era agnóstico, primeiro explica que há assuntos como a constutuição do mundo físico e as leis da natureza, que estão sob o magistério chamado ciência: “uma autoridade de ensino dedicada ao uso de métodos mentais e técnicas de observação validadas pelo sucesso e pela experiência e consideradas particularmente adequadas para descrever, e tentar explicar, a construção factual da natureza” (p. 49). Já outro tipo de questões, de ordem moral, estão sob outro magistério, “dedicado à busca do consenso, ou ao menos de um esclarecimento de pressuposições e critérios, a respeito do ‘deve ser’ ético, mais do que uma busca de um ‘é’ factual” (p. 49-50).
Pois bem, a proposta de Gould é simples: esses dois magistérios, a ciência e a religião (que não cobrem toda a experiência humana, ressalte-se), lidam com assuntos diferentes, e então não devem meter o nariz na competência alheia. Em outras palavras, cada um no seu quadrado, como diria um hit recente. Mas apenas isso não define os MNI, explica Gould; há outras regras. Uma delas diz que os dois magistérios têm status equivalente, ou seja, não se menospreza nenhum deles (p. 52). Outra afirma que, embora os MNI defendam o “cada um no seu quadrado”, esses quadrados têm (muitos) pontos de contato, embora não de sobreposição (p. 57). Nas questões complexas que pedem respostas dos dois magistérios, as contribuições são separadas. Em resumo, não se usa conceitos religiosos para explicar os fatos da natureza, que por sua vez não dão nenhuma pista sobre moralidade – Gould usará um bom espaço, mais adiante no livro, para falar do caso de uma vespa que paralisa suas vítimas, coloca seus ovos dentro do bicho, e as larvas da vespa vão literalmente “comendo” o hospedeiro por dentro, tomando o cuidado de deixar os órgãos essenciais à vida por último. Muita gente explorou esse exemplo com os objetivos mais diversos, mas o que Gould afirma é que não se pode atribuir nenhuma categoria moral à natureza. A vespa não é cruel, sacana ou o que for; ela simplesmente é assim, como a Gabriela na modinha do Caymmi.
A solução de Gould é simples, não é? Mas o próprio autor se assombra ao ver como é tão complicado adotar uma solução simples como essa, e por isso ele dedicará os capítulos seguintes aos motivos do suposto conflito entre ciência e religião. Algumas razões são históricas, e Gould analisa os famosos livros de Andrew Dickson White e John William Draper escritos no fim do século XIX (p. 81-89), mostra como se criou uma lenda urbana totalmente infundada sobre uma suposta crença medieval de que a Terra era plana (p. 90-99) e narra com riqueza de detalhes toda a batalha judicial ocorrida nos Estados Unidos sobre o criacionismo nas escolas públicas (p. 100-134), da qual o próprio Gould foi personagem.
Outros motivos, continua o autor, são psicológicos. Ele classifica “a busca equivocada por um significado intrínseco na natureza” (p. 141) como a maior violação dos MNI, usando como exemplo o Salmo 8. Para Gould, o homem, embora seja a mais inteligente das espécies, é apenas mais uma na lista, de um ramo relativamente novo na árvore da vida, e que sequer parece ser o mais promissor deles, já que em termos de resistência e flexibilidade as bactérias dão um banho nos humanos. Já comentei em outras ocasiões que o que torna o homem especial (e merecedor de tudo aquilo que o salmo menciona) são seus atributos espirituais; assim, é mais que compreensível a análise de Gould, já que sua análise parte de um ponto de vista estritamente material.
Finalmente vi alguém afirmando que a Igreja Católica nunca se opôs à teoria de Darwin, embora Gould se dedique a um certo exercício de adivinhação ao supor que Pio XII escreveu meio contrariado os trechos da Humani Generis sobre o evolucionismo. Mas da leitura ficou uma impressão de que Gould não compreendeu muito bem algumas coisas sobre a Igreja, ao criar oposição entre os dois concílios do Vaticano (o primeiro, suspenso em 1870, e o segundo, realizado na década de 60 do século passado). Na verdade, em alguns momentos eu me pergunto se o próprio conceito de “religião” usado por Gould não estaria equivocado. Vejam, por exemplo, esse trecho (negrito meu): “Se esses colegas [ateus militantes] desejam lutar contra a superstição, o irracionalismo, o filistianismo, a ignorância, o dogma e uma série de outros insultos ao intelecto humano (e também muitas vezes politicamente convertidos em perigosas ferramentas a serviço do assassinato e da opressão), então que Deus os abençoe – mas não chamem esse inimigo de ‘religião’.” (p. 164). Acontece que o dogma (ainda que nem sempre formulado como tal) é um elemento essencial da religião. Gould parece limitar a religião a preceitos morais, mas ela vai mais além, incluindo uma série de afirmações sobre Deus e sobre sua relação com os homens, afirmações essas que não podem ser cientificamente comprovadas ou refutadas. Aliás, mesmo os preceitos morais, embora tenham por base a lei natural, que extrapola a religião, têm também por finalidade algo maior, como revela a pergunta do jovem rico a Jesus (Mt 19, 16, negrito meu de novo): “o que devo fazer de bom para ter a vida eterna?” Se o próprio Gould reconhece que os preceitos morais não são exclusividade de gente religiosa (p. 50), reduzir a religião a um conjunto de “faça isso, não faça aquilo” chega a ser perigoso para toda a estrutura que o autor monta na defesa dos MNI.
Feitas essas ressalvas, eu acredito que a leitura de Pilares do tempo pode ser muito benéfica especialmente para quem defende a tese de que ciência e religião não podem coexistir. Já para quem defende uma atitude de maior integração entre as duas esferas, a leitura certamente trará novas informações e novos modos de olhar a questão, mas em certos pontos poderá parecer que alguma coisa está faltando.
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Tudo indica que o livro está esgotado. Comprei o meu na Livraria Galileu, do Rio de Janeiro, que também vende pela Internet. O sebo online Estante Virtual pode ter alguns exemplares.
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