Sociedade se incomoda muito mais com o uso de animais em pesquisas que com a demanda por tecidos de fetos abortados no desenvolvimento de vacinas e medicamentos.| Foto: Belova59/Pixabay
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A cientista Stacy Trasancos, doutora em Química, mestre em Teologia, estudiosa do trabalho do padre Stanley Jaki e autora de Particles of Faith, está disposta a não deixar passar em branco a preciosa chance que a pandemia de Covid-19 nos deu para pressionar a indústria farmacêutica a encerrar o uso de tecidos provenientes de abortos para a pesquisa biomédica. Enquanto – infelizmente – parte significativa da liderança católica adotou uma postura de “primeiro, vacina em todo mundo, a moral a gente vê depois”, ela e o marido, José Trasancos, estão mantendo a organização Children of God for Life – ele, como CEO; ela, como Chief Research Officer – na dianteira da luta por uma pesquisa que respeite a dignidade da pessoa humana em todos os seus momentos. Para quem tem boa memória e acompanhou o Tubo de Ensaio ao longo de toda a discussão sobre o uso de linhagens celulares oriundas de fetos abortados no desenvolvimento de vacinas contra a Covid, a Children of God for Life foi a entidade que, em 2003, então presidida por sua fundadora, Debra Vinnedge, pediu à Pontifícia Academia para a Vida um parecer sobre a moralidade do uso de vacinas (quaisquer vacinas) que tivessem empregado tais linhagens em seu desenvolvimento e testes.

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Entre as iniciativas que Stacy e José Trasancos estão levando adiante está uma ação no front legislativo, com projetos de lei que obriguem a indústria farmacêutica a informar quais de seus produtos usaram material biológico ilícito na produção ou em testes – afinal, se ações muito mais prosaicas, como o uso de alimentos transgênicos, exige identificação, por que não fazer o mesmo com as linhagens celulares ilícitas? Além disso, Stacy está escrevendo um livro sobre como a indústria farmacêutica tem feito uso amplo, geral e irrestrito de tecidos provenientes de crianças abortadas. Sim, porque essa demanda continua existindo, não é como se os pesquisadores nos dissessem “ah, mas já pegamos tudo de que precisávamos lá nos anos 70, agora não fazemos mais isso”. Aliás, se alguém ainda tinha qualquer dúvida a esse respeito, é só lembrar do corajoso trabalho de David Daleiden, que expôs alguns podres da Planned Parenthood anos atrás e agora está sendo perseguido por isso. Aqui, se os tecidos eram vendidos ou doados é o de menos, o importante é que continua a haver demanda – e oferta – por esses tecidos.

Não há equivalência moral possível entre o uso de animais e o de tecidos extraídos de crianças abortadas na pesquisa biomédica. Que a sociedade seja muito mais enfática na condenação daquele que deste é muito revelador sobre os tempos que correm

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E é aqui que entra um texto que Stacy compartilhou em seu perfil no Facebook dias atrás. É um editorial de 2019 da revista Science, assinado por Sally Temple e Lawrence Goldstein e chamado “Why we need fetal tissue research” – o nome já diz tudo. Sugiro que vocês leiam tudo primeiro, e depois façam um exercício. O que aconteceria se todo o texto fosse idêntico, mas trocássemos “tecidos de fetos humanos” por “animais de laboratório” ou algo parecido? Posso garantir que a esta altura os autores já teriam sofrido cancelamento na internet ou coisa até pior nas mãos dos militantes pelos direitos dos animais. Mas, como estamos falando de crianças abortadas (sim, abortadas: respondendo a uma comentarista, este texto explica por que não é possível recolher esses tecidos no caso de abortos espontâneos), pouca gente deu bola. Poucas coisas explicam melhor o Zeitgeist.

E isso é hediondo, porque qualquer ser humano – ainda mais um ser humano indefeso e inocente – tem uma dignidade muito maior que qualquer animal de laboratório, rato, cão ou chimpanzé. Não que possamos dispor dos animais como bem desejarmos; o Catecismo da Igreja Católica afirma que “os experimentos médicos e científicos em animais são práticas moralmente admissíveis, se permanecerem dentro dos limites razoáveis e contribuírem para curar ou salvar vidas humanas (...) é contrário à dignidade humana fazer os animais sofrerem inutilmente e desperdiçar suas vidas” (nn. 2417 e 2418). Mas não há equivalência moral possível entre o uso de animais e o de tecidos extraídos de crianças abortadas na pesquisa biomédica. Que a sociedade seja muito mais enfática na condenação daquele que deste é muito revelador sobre os tempos que correm.

Isso sem falar que a argumentação do editorial não esconde a inspiração utilitarista: como esse material seria descartado de qualquer forma, então que aproveitamos o sacrifício de uns (obviamente os autores não entendem a eliminação de fetos em termos de “sacrifício”, mas vá lá) para a felicidade geral que virá do desenvolvimento de novas vacinas e terapias. O erro, então, não está no fato de estamos destruindo seres humanos indefesos e inocentes, mas no fato de não usarmos os “produtos” dessa destruição para o bem da sociedade. É o “might makes right” em sua essência. Só posso desejar a Stacy, José e à Children of God for Life todo o sucesso em sua luta, porque sabemos muito bem que, assim como uma possível reversão de Roe v. Wade nos EUA tem o potencial de influenciar o mundo todo, também a adoção de práticas éticas de pesquisa biomédica por lá terá reflexos também por aqui.