Em todos esses anos nessa indústria vital (o Tubo de Ensaio completou uma década e meia em 2023), infelizmente há uma série de assuntos ou de pessoas que ainda conheço mal ou nem conheço, já que não me dedico integralmente ao estudo da relação entre ciência e fé. Uma dessas pessoas é Pierre Teilhard de Chardin, o padre jesuíta francês que também foi veterano condecorado da Primeira Guerra Mundial, paleontólogo e defensor da Teoria da Evolução; que foi impedido de ensinar pela sua ordem jesuíta e teve publicações criticadas pelo Santo Ofício (embora nenhuma delas tenha ido parar no Index), mas tem sido “reabilitado” com referências favoráveis, primeiro por Bento XVI e especialmente por Francisco.
Apesar de carregar essa “falha no currículo” (que espero sanar em breve) de nunca ter lido nenhuma das obras de Teilhard de Chardin para conhecer seu pensamento, sei o que alguns amigos acham dele. E, a julgar por essas referências próximas, é uma figura bastante polarizadora: há quem goste muito de seu trabalho e o considere autor de conceitos revolucionários que ajudam a buscar uma síntese entre ciência e fé, e há quem o rejeite veementemente como herege panenteísta, racista e eugenista. Um amigo que faz parte do grupo dos entusiastas, o padre argentino Lucio Florio, da Fundação Diálogo entre Ciência e Religião (Decyr), me chamou a atenção recentemente para uma efeméride relacionada a Teilhard de Chardin.
Neste ano comemora-se o centenário da Missa Sobre o Mundo, um texto que o padre-paleontólogo escreveu em agosto de 1923 na festa litúrgica da Transfiguração do Senhor, que era muito cara a Teilhard de Chardin. Na ocasião ele estava no remoto Deserto de Ordos, na região chinesa da Mongólia Interior, e não tinha nem pão nem vinho consigo; sem poder celebrar a missa, em vez disso compôs a Missa Sobre o Mundo. Belo, sem dúvida; muito místico em certos trechos; em alguns momentos bastante eucarístico, em outros com conceitos aparentemente estranhos do ponto de vista da ortodoxia católica (“o Universo, imensa Hóstia, fez-se Carne”?!), até meio panteísta; há partes que parecem remeter ao “Ponto Ômega” e ao “Cristo Cósmico” que são essenciais ao pensamento de Chardin. Ainda precisarei relê-la um bocado de vezes.
Há quem goste muito de Teilhard de Chardin e o considere autor de conceitos revolucionários que ajudam a buscar uma síntese entre ciência e fé, e há quem o rejeite veementemente como herege panenteísta, racista e eugenista
Na conferência que fez recentemente em um congresso acadêmico sobre o centenário da Missa Sobre o Mundo, o padre Florio fala de uma “nostalgia eucarística” que “manifesta este chamado interior para direcionar a pesquisa e a espiritualidade na direção do Cristo histórico e escatológico. As últimas entradas em seu diário dão testemunho disso: ‘eu vou na direção daquele que está vindo’”. E, escrevendo em 2016 sobre Teilhard de Chardin, Eucaristia e cosmos, o padre Antonio Spadaro, então diretor-geral da revista La Civiltà Cattolica, mostra como a Missa Sobre o Mundo foi parar, de certa forma, nos documentos pontifícios:
“As reflexões teilhardianas se fazem presentes de forma implícita quando Francisco escreve sobre a Eucaristia: ‘No apogeu do mistério da Encarnação, o Senhor quer chegar ao nosso íntimo através de um pedaço de matéria. Não o faz de cima, mas de dentro, para podermos encontrá-Lo a Ele no nosso próprio mundo. Na Eucaristia, já está realizada a plenitude, sendo o centro vital do universo, centro transbordante de amor e de vida sem fim. Unido ao Filho encarnado, presente na Eucaristia, todo o cosmos dá graças a Deus. Com efeito a Eucaristia é, por si mesma, um ato de amor cósmico’ (Laudato Si’, 236). E aqui Francisco cita João Paulo II, que expressou o mesmo pensamento teilhardiano na sua encíclica Ecclesia de Eucharistia: ‘Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar de uma igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo’ (Ecclesia de Eucharistia, 8, citado em Laudato Si’, 236; destaque do papa João Paulo II). Aqui João Paulo II citava o célebre texto de Teilhard Missa Sobre o Mundo, escrito no Deserto de Ordos, na China.”
Enfim, não terei como fugir de Teilhard de Chardin por muito mais tempo, já que é alguém que se esforçou tremendamente na busca de uma síntese entre ciência e fé – se está equivocada ou não, só há um jeito de descobrir, que é lendo, nem que seja para criticar depois.
Já pensou em escrever e publicar um livro sobre ciência e fé?
Temos atrás falei de iniciativas interessantes na América Latina para promover autores locais, como as coleções de livros da Universidade Austral e da Universidade Católica de Salta, e a revista on-line Quaerentibus, que publica artigos em todas as línguas latinas. Mas aqui também temos o Radar ABC2, da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência, que está à procura de talentos brasileiros em três áreas: estudos de livros, ensaios acadêmicos e livros. Neste mês de novembro foi aberta a segunda chamada para livros, e os interessados têm até janeiro do ano que vem para enviar suas propostas, de acordo com as instruções da chamada – é preciso, por exemplo, que o material seja inédito, e o candidato tem de incluir um capítulo de amostra. O material será examinado por um comitê selecionador, e os vencedores em cada categoria assinarão um contrato e receberão R$ 44 mil, pagos à medida que o projeto for sendo entregue pelo autor.
Falando em livro...
... sei que A razão diante do enigma da existência, o livro que reúne dezenas de entrevistas publicadas pelo Tubo de Ensaio nesses 15 anos, não entrou em nenhuma promoção de Black Friday, mas não é por isso que você vai deixar de adquirir, certo?
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