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A afirmação de que o universo tem um criador traz consigo uma série de consequências que, segundo o então cardeal Joseph Ratzinger, poderiam reacender a esperança de um Ocidente desiludido.
A afirmação de que o universo tem um criador traz consigo uma série de consequências que, segundo o então cardeal Joseph Ratzinger, poderiam reacender a esperança de um Ocidente desiludido.| Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney

(Mas calma, não é o que você está pensando!)

Em 1989, o então cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, discursou para os chefes das comissões doutrinais das conferências episcopais europeias sobre os desafios para o crescimento da fé na Europa, e entre eles mencionou a necessidade de uma nova “teologia da criação”. Depois de lamentar que ela tenha quase desaparecido dos compêndios de Teologia de sua época, Ratzinger afirma que esse sumiço e suas consequências estão na base do “profundo desespero atual da humanidade, um desespero que se esconde por trás de uma fachada oficial de otimismo”. E acrescenta:

“Mesmo assim, há uma consciência silenciosa sobre a necessidade de uma alternativa que nos tire dos becos cegos de nossas plausibilidades, e talvez haja – mais do que podemos imaginar – uma esperança silenciosa de que um cristianismo renovado ofereça essa alternativa. Isso só pode ser possível, no entanto, se o ensinamento da criação for novamente desenvolvido. Tal tarefa, portanto, deveria ser considerada uma das prioridades da teologia atual.”

“Teologia da criação” não tem nada a ver com os debates sobre criacionismo, Teoria da Evolução ou Design Inteligente. Seu objetivo é entender o que realmente queremos dizer quando afirmamos crer “em Deus Pai Todo-Poderoso, criador do céu e da terra”. E Ratzinger o explica ao dizer que “temos de evidenciar, mais uma vez, o que significa afirmar que o mundo foi criado ‘em sabedoria’, e que o ato criador de Deus é algo além do ‘bang’ de uma explosão primordial”. Todo cristão acredita que o universo foi criado por Deus, uma convicção partilhada também por outras religiões. Em 2009, duas décadas depois daquele discurso de Ratzinger, a Faculdade Teológica da Catalunha organizou um Seminário sobre Teologia da Criação; quatro intervenções daquele evento foram agrupadas em um volume organizado por Tomasz Trafny e Armand Puig i Tàrrech, e intitulado God and World: Theology of Creation from scientific and ecumenical standpoints. O livro é parte da coleção STOQ Project Research Series – o STOQ (Science, Theology and the Ontological Quest) é um projeto de ciência e fé surgido em 2003 e que reunia o Vaticano (por meio do atual Dicastério para a Cultura) e as universidades pontifícias romanas.

“Teologia da criação” não tem nada a ver com os debates sobre criacionismo, Teoria da Evolução ou Design Inteligente. Seu objetivo é entender o que realmente queremos dizer quando afirmamos crer “em Deus Pai Todo-Poderoso, criador do céu e da terra

O livro tem uma apresentação do cardeal Gianfranco Ravasi, prefeito do Dicastério para a Cultura, que com sua erudição costumeira faz algumas considerações importantes – por exemplo, sobre o conceito de criação ex nihilo (a partir do nada) só ter chegado à mentalidade hebraica por meio da filosofia grega – e oferece uma crítica aos Magistérios Não Interferentes de Stephen Jay Gould. Em seguida, Trafny e Puig i Tàrrech introduzem o tema e as questões relevantes para a teologia da criação: a relação entre Deus, o homem e o universo; ou o fato de o universo ser uma criação harmoniosa. E aí vêm os quatro breves ensaios.

O primeiro é de John Polkinghorne, que dispensa apresentações. Ele recorda as limitações da ciência em seu aspecto explicativo da realidade, e rejeita as abordagens simplistas que traçam limites muito rígidos entre as “perguntas da ciência” (o “como?”) e as “perguntas da religião/filosofia” (o “por quê?”), mostrando que há uma área cinzenta em questões como as que envolvem causalidade. O físico-clérigo recorda que nem os ateus conseguem escapar do fato de que o universo parece “ajustado” para nossa existência, e diz que há um balanço e uma relação fértil entre acaso e necessidade, que atuam na medida exata para permitir que coisas novas surjam e se perpetuem.

O meu trecho favorito, no entanto, é aquele em que Polkinghorne descreve a criação como um ato do amor divino, e que por isso o criador não é “nem o espectador indiferente do deísmo, que depois de organizar tudo apenas deixa as coisas acontecerem, nem o titereiro cósmico que puxa todas as cordinhas do teatro da criação”. Porque Deus ama a criação, lhe dá a independência e a autonomia para seguir seu rumo, em uma “autocontenção divina para permitir que a criatura possa ser verdadeiramente si mesma e, de fato, construir a si mesma”. É com base nessa convicção que Polkinghorne rejeita o movimento do Design Inteligente, preferindo o que chama de “evolução teísta” – sim, em sei, eu disse lá no começo que a teologia da criação não diz respeito à controvérsia sobre as origens, mas ela acaba sendo inescapável quando essa teologia é tratada em sua interface com a ciência.

O segundo texto é de Jürgen Moltmann, outro que dispensa apresentações, ao menos para os teólogos, e que nos deixou recentemente, no comecinho de junho. Ele já começa provocando: diz que explicar o mundo não é a mesma coisa que compreender o mundo – a ciência explica, e explica bem; mas, para compreender, é preciso buscar a ajuda da filosofia e da teologia. Moltmann pede que deixemos de lado a ideia de criação como um trabalho acabado e pensemos em um processo com três fases: aquela que ocorreu “no princípio”, mas que continua no presente e só terminará mesmo quando Deus “fizer novas todas as coisas”. Nesta creatio continua, Deus conserva e renova – é assim que ele “sustenta” o universo, não de uma forma distante ou impessoal; não como Zeus, mas como Atlas, diz Moltmann.

O teólogo também recorre ao tema da criação por amor que autolimita a divinidade. Deus não seria menos Deus se não houvesse criado nada; mas quis criar, e criou. “Uma realidade foi chamada à existência, realidade que não é nem divina, nem desprovida de significado, mas abençoada”, afirma Moltmann. Em seguida, ele destrincha alguns aspectos da teoria evolutiva de Darwin para afirmar que interpreta “as características da natureza acima mencionadas como a presença do espírito de Deus empurrando na direção da transcendência, que antecipa o futuro da natureza dentro do Reino do Deus Uno e Trino”.

O tema do futuro é importante, pois a história do universo e da humanidade é lida pela tradição judaico-cristã como tendo em vista a vinda (ou o retorno) do “Deus da esperança”, no fim dos tempos. Quanto a nós, Moltmann diz que “o homem não é nem o produto final de um desenvolvimento, nem permanecerão os mesmos para sempre. Pelo contrário, ainda não ocorreu o ‘não se manifestou ainda o que havemos de ser. Sabemos que, quando isso se manifestar, sere­mos semelhantes a Deus, porquanto o veremos como ele é’ (1Jo 3,2). A existência humana atual, de um ponto de vista teológico, é então visto como a antecipação e o começo de um futuro maior”. Um futuro em que a “nova criação” completará o que Deus começou “no princípio”. “A verdadeira criação não está atrás de nós, mas adiante de nós”, completa o teólogo.

Para Tomás de Aquino, as ciências naturais não são afetadas pela ideia de criação, pois esta descreve como tudo veio do “não ser” ao “ser”, enquanto aquelas estudam as mudanças na natureza

O único dos quatro palestrantes que eu não conhecia é o jesuíta Manuel García Doncel, teólogo e doutor em Física. Ele descreve brevemente o pensamento de alguns teólogos que enfrentaram a questão da criação à luz da ciência da evolução para desenvolver seus próprios entendimentos da creatio continua e do que Doncel chama “criação evolucionária” (que ele mesmo diz ser a mesma coisa que Polkinghorne chama de “evolução teísta”). Tenho lá minhas dúvidas sobre algumas dessas ideias, como a de Karl Rahner segundo a qual “o espírito humano emerge de um ser material” – suponho, apenas suponho, que isso tenha algo a ver com o que comentei aqui a respeito da visão rahneriana da possibilidade de ação direta de Deus. Descrevendo o pensamento de Karl Schmitz-Moormann, para quem a evolução implica progresso em quatro “parâmetros qualitativos” (união, consciência, informação e liberdade), Doncel diz a certa altura que “poderíamos redefinir nossa ‘alma espiritual’ como a coleção de toda a nossa informação pessoal, produzida individualmente com apoio da ação divina”... o que esse povo tem com a alma, afinal?

Não quer dizer que não haja ideias interessantes também. Um exemplo é a noção de Schmitz-Moormann da criação como um “chamado” divino a uma união maior entre nós e com Deus, em uma imitação da união experimentada pelas pessoas da Trindade. Mas não sou teólogo e meu “desconfiômetro de ortodoxia” pode estar desregulado a esse respeito. Admito que, enquanto os textos de Polkinghorne e Moltmann são mais “pé no chão” sem serem superficiais, o texto de Doncel me deu muito trabalho. Não sei se por ser muito complicada ou muito polêmica, a intervenção do jesuíta também gerou a mais longa das discussões registradas no livro.

Quem fecha a obra é William Carroll, que o leitor do Tubo de Ensaio já conhece. O título de sua palestra é provocativo: “Dois Criadores ou um?”, e nela Carroll, que é especialista no pensamento de São Tomás de Aquino, vai defender uma afirmação do santo, a de que “não apenas a fé afirma que houve uma criação, mas a razão também o demonstra”. Carroll diz que essa ideia foi bastante atacada em várias frentes: houve quem dissesse que Tomás estava abraçando o Primeiro Motor aristotélico em vez do Deus Uno e Trino dos cristãos; quem dissesse que ele estava menosprezando a Filosofia, fazendo dela mero degrau para a Teologia; e quem dissesse que Tomás não percebeu que o Criador da filosofia não era o mesmo Criador da revelação.

Contra essas alegações, Carroll explica como Tomás de Aquino entende a ideia de “causa”, que é central para o tema da criação e não tem nada a ver com precedência temporal, mas com relações de dependência. Da mesma forma, “origem” não é simplesmente um início no tempo, um esclarecimento que Carroll fez na entrevista que me deu em 2017. Disso vem outra distinção importante, entre o universo ser criado (ou seja, ter sua origem na vontade divina) e o universo ser eterno (sem um princípio temporal): são coisas diferentes. Não haveria contradição, afirma Tomás, em um universo simultaneamente criado e eterno; se sabemos que ele não é eterno, é porque a Revelação o diz logo no início do Gênesis. No fim das contas, a leitura dos argumentos de Tomás demonstra que se trata sempre do mesmo Deus, mas apreendido em “camadas”: o Criador cuja existência os filósofos podem concluir, o Senhor que se revelou aos hebreus e fez aliança com eles; e a Trindade que Cristo anunciou com sua vinda.

 Disso tudo surgem duas consequências “práticas”. A primeira diz respeito a como nos enxergamos: “somos seres com uma história. Para os crentes, não é uma história qualquer, é história sagrada, a história do relacionamento com o Deus que nos deu sentido e destino desde o início, e que interveio decisivamente na história humana”. A segunda tem a ver com as ciências naturais, que não são afetadas pela ideia de criação, pois esta descreve como tudo veio do “não ser” ao “ser”, enquanto aquelas estudam as mudanças na natureza: “Tomás mostra que não há conflito entre a criação e nenhuma das alegações das ciências naturais, já que seu objeto é o mundo das coisas que mudam, e criação não é mudança. Sejam essas mudanças biológicas ou cosmológicas, sem fim ou finitas no tempo, elas ainda são processos. A criação tem a ver com a existência das coisas, não com as mudanças que elas sofrem”. Que Deus seja a causa de tudo o que existe não exclui a ação de causas secundárias que agem no mundo, e aí entram as ciências.

São várias as perspectivas tratadas no livro, mas todos os palestrantes têm em comum algo fundamental: acreditam no Deus Criador. E isso nos leva ao título dessa resenha, pois é como Polkinghorne conclui sua apresentação:

“Uma característica irritante do discurso religioso contemporâneo é a forma como algumas palavras foram sequestradas em uma tentativa de transformá-las em propriedade de uma minoria. Assim como outros teístas, sou um criacionista no sentido de acreditar que a vontade divina é a fonte da existência do universo e que o propósito divino está expresso na história, mas certamente não sou um ‘criacionista’ neste curioso sentido norte-americano de acreditar em uma estranha interpretação literal dos primeiros dois capítulos do Gênesis. Também creio em design inteligente, inscrito na constituição física do mundo e que encontra sua expressão emergente por meio de processos guiados, mas não unicamente determinados, por Deus, mas não acredito que o Criador escolheu agir por atos específicos de intervenção direta, como se o grande ato da criação precisasse de contínuas gambiarras reconstrutoras em seus detalhes.”

Assino embaixo.

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