Um vírus danado me deixou fora de combate por boa parte da semana passada, e acabei não comentando nada no “Darwin Day”, comemorado no dia 12 e que recorda o aniversário de Charles Darwin. O lado bom é que deu tempo de ver a última coluna da série que o Flávio Gordon preparou sobre o darwinismo e que saiu no dia 13. Nos três textos, o colunista fez uma excelente recapitulação da reação entre religião (especialmente a católica) e Teoria da Evolução. Mas, no meio do texto, Gordon afirma que “apesar de seus méritos científicos inegáveis, portanto, a Teoria da Evolução ficou consagrada menos por esse motivo que por sua metafísica implícita, que, negando toda transcendência à existência humana, apresenta-se como alternativa à metafísica judaico-cristã” (o destaque é meu). E é aqui que eu me permito discordar.
Que a Teoria da Evolução foi usada para sustentar uma metafísica tosca, que nega a existência de um criador ou de uma inteligência por trás dos mecanismos da evolução, me parece inegável, e é com esse sentido que eu prefiro usar o termo “darwinismo”: não como sinônimo da Teoria da Evolução propriamente dita, mas apenas como o seu sequestro ideológico para fins de propagação do ateísmo. Estão aí Richard Dawkins, Jerry Coyne e outros que não me deixam mentir. Mas não me parece que essa “negação de toda transcendência à existência humana” seja algo intrínseco à Teoria da Evolução.
Ainda que Darwin tivesse as suas próprias concepções metafísicas, não creio que possamos confundi-las ou anexá-las à Teoria da Evolução
Quando Darwin escreve, em carta de 1860 a Asa Gray, que não consegue imaginar como um “Deus onipotente e bondoso teria criado intencionalmente as Ichneumonidae”, aquelas vespas que colocam seus ovos dentro de lagartas vivas; ou quando encerra algumas edições de A Origem das Espécies referindo-se à vida “insuflada pelo Criador em poucas formas, ou talvez em uma única” (menção da qual ele parece ter se arrependido, mas que acabou mantendo nas edições subsequentes revisadas por ele), ele sabe que está saindo do terreno da sua teoria científica e fazendo considerações que lhe são alheias. O mesmo Darwin que muitas vezes pende para o materialismo escreve, em carta de 1879, que “me parece absurdo duvidar que um homem possa ser um teísta convicto e um evolucionista”.
Mesmo no caso do continuum que Darwin estabelece entre o ser humano e o restante da criação, também estamos diante de um caso de “sequestro” da teoria científica – neste caso, como aponta Gordon, culpa de Sigmund Freud. Um leitor atento da Bíblia poderá enxergar esse mesmo continuum em detalhes como o fato de Deus usar o pó da terra para criar o homem, uma metáfora elegante da qual o ateísmo também tenta se apropriar com a famosa citação da “poeira das estrelas” de Carl Sagan.
Então, ainda que Darwin tivesse as suas próprias concepções metafísicas, não creio que possamos confundi-las ou anexá-las à Teoria da Evolução, que é uma mera descrição (a melhor delas, acrescento) de como se chegou à variedade da vida na Terra. Ela tem tanta “metafísica implícita” quanto o Big Bang, por exemplo, que é uma mera descrição (e, novamente, a melhor delas) do início do universo. Lembram da famosa sequência de 20 minutos de A Árvore da Vida, sensacional filme de Terrence Malick? Depois que a personagem de Jessica Chastain reza, repetindo o salmo 8, “o que somos nós para Ti?”, o filme mostra o surgimento do universo, das galáxias, dos planetas, da vida na Terra, com dinossauros e tudo. Há quem diga que “a sequência que retrata a origem da vida é fundamental ao estabelecer os O’Brien (e toda a humanidade) como um ponto minúsculo, insignificante e solitário em meio ao universo”, como fez o crítico Pablo Villaça. Eu enxergo a mesmíssima cena como se Deus estivesse respondendo “viu? Fiz tudo isso pra você”. A cena é igual para todos; cada um a lê de acordo com sua visão de mundo. Com as teorias científicas é a mesma coisa: quem as usa para tirar conclusões metafísicas, boas ou ruins, o faz por conta e risco e não pode jogar a culpa na própria teoria.
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