O terraplanismo não me deixa em paz mesmo. Agora é a vez de uma reportagem do Estadão sobre outro futuro burocrata de nãoseiqueésimo escalão, o novo presidente da Biblioteca Nacional, Rafael Nogueira. Sim, tem um tosco exercício de futurologia da reportagem ao concluir, antes mesmo de o nomeado sentar-se na cadeira, que a entidade viverá sua darkest hour, a pior gestão de todos os tempos, pior que aquela (durante o governo Lula) em que obras foram roubadas, pior que aquela (durante a ditadura) em que jornais comunistas foram deixados para apodrecer graças à umidade. Mas o que dói em mim é o título: “Novo presidente da Biblioteca Nacional será guardião de obras feitas na fase da ‘Terra plana’”. Oi?
E isso que Nogueira nem falou no tema, até onde se sabe. Mas que “fase da Terra plana” é essa? A “gravata” (como chamamos aquele textinho logo abaixo do título) fala em século 11, e a reportagem cita um manuscrito grego dos Evangelhos datado dessa época. Como todo o resto do inventário feito pelo repórter Leonencio Nossa é posterior, devo supor que essa é a tal “fase da Terra plana”. Alguns séculos antes de Copérnico, nos diz o primeiro parágrafo do texto, fazendo o polonês entrar na discussão como Pilatos no Credo, já que uma coisa é a discussão sobre o formato da Terra, e outra bem diferente é a discussão sobre a posição dos astros no céu (por mais que as duas tolices, terraplanismo e geocentrismo, às vezes apareçam juntas).
Não existe “fase da Terra plana”. Se existiu alguma, terminou no século 3.º antes de Cristo
Bom, aos fatos, como gosta de dizer o José Carlos Fernandes. A não ser que a Biblioteca Nacional tenha uma cópia das Instituições Divinas, de Lactâncio, do século 4.º, ou da Topografia Cristã de Cosme Indicopleustes, escrita em 550, o mais provável é que não haja nenhuma obra terraplanista no acervo que Nogueira vai administrar. Talvez a Biblioteca tenha alguma edição antiga da Suma Teológica, da segunda metade do século 13, em que São Tomas de Aquino diz logo de início que a Terra é redonda. Mas claro, Tomás não é ninguém na fila do pão, enquanto Lactâncio e Cosme eram luminares da Cristandade, referências absolutas, deve imaginar o repórter.
Vamos deixar uma coisa bem clara: não existe “fase da Terra plana”. Se existiu alguma, terminou no século 3.º antes de Cristo. Os cristãos medievais não acreditavam em Terra plana. Deve haver mais terraplanista hoje que em toda a história anterior da Cristandade somada. A única coisa que pode ser dita em defesa do repórter é que ele não jogou o terraplanismo medieval nas costas da religião, falando, em vez disso, do “tempo em que alguns setores da ciência ainda consideravam a Terra plana” – mas continua muito errado do mesmo jeito.
Então, ficamos assim. Temos aqueles que acreditam em Terra plana e aqueles que acreditam que as pessoas acreditavam em Terra plana. Os primeiros defendem pseudociência e os segundos, pseudo-história. Será que podemos chamar essa “crença na crença” de metaterraplanismo?