Parece que o novo presidente da Funarte é terraplanista, e isso está causando um bom frisson na imprensa, colunistas rasgando as vestes e tudo o mais que acompanha certas nomeações deste governo. Como me disse o Paulo Polzonoff, “e daí?” – e eu entendo esse dar de ombros. O sujeito não vai ser ministro da Ciência e Tecnologia, não vai escrever currículo escolar de Ciências, as besteiras que ele diz sobre o formato da Terra deviam importar bem pouco perto de outras sandices, essas sim relevantes, sobre coisas que estarão em sua área de atuação (alguém avise os roqueiros conservadores). E, no fim das contas, estamos falando de mais um burocrata de enésimo escalão, certo? Talvez ele até se revele um bom burocrata, vai saber.
Mas o terraplanismo de Dante Mantovani importa em um sentido, que não tem absolutamente nada a ver com o fato de ele estar indo para o governo. Segundo o jornalista Guilherme Macalossi, que encontrou as mensagens terraplanistas, Mantovani desativou seu perfil do Facebook, então não posso confirmar em primeira mão, mas, a julgar pelas outras manifestações sem noção (a cada vez que um jornalista usa “polêmico” quando pode usar um termo mais exato, como “de mau gosto”, morre um panda na China) do maestro, ele é cristão. E Santo Agostinho tem um recado para esse pessoal.
Os demais, os “infiéis”, vendo os “erros tão absurdos” cometidos por essas pessoas religiosas, inevitavelmente se questionarão: se a ciência do sujeito é tão fora da casinha, será que sua fé também não é?
“Acontece muitas vezes que um não cristão de tal modo conhece algo sobre a terra, o céu, os demais elementos deste mundo, o movimento e a conversão ou também a grandeza e a distância dos astros, os eclipses do sol e da lua, os círculos dos anos e dos tempos, as naturezas dos animais, das frutas, das pedras e as demais realidades semelhantes, que o defende por argumentos verdadeiros e pela experiência. Mas é muito vergonhoso, pernicioso e digno de se evitar ao máximo que um cristão fale destes assuntos como estando de acordo com Escrituras cristãs, pois ao ouvi-lo deliberar de tal modo que, como se diz, cometa erros tão absurdos, um infiel mal consegue segurar o riso. E o mal não está em que se zombe de um homem que comete erros, mas que os de fora acreditem que nossos autores afirmem tais coisas. E assim são criticados e rechaçados como ignorantes.” Está em A interpretação literal do Gênesis, livro 1, capítulo 19, parágrafo 39.
Agostinho fala dos cristãos que apoiam loucuras pseudocientíficas na doutrina ou na Bíblia, mas, se o santo vivesse nos dias de hoje, certamente ampliaria o seu raciocínio para colocar nele qualquer cristão que defenda pirações anticientíficas, com ou sem base religiosa. Por um motivo bem simples: o que o santo de Hipona disse, com muito mais elegância, é que esse tipo de cristão queima o filme da categoria, e queima muito. Os demais, os “infiéis”, vendo os “erros tão absurdos” cometidos por essas pessoas religiosas, inevitavelmente se questionarão: se a ciência do sujeito é tão fora da casinha, será que sua fé também não é? Vale para terraplanista, para geocentrista, para antivacina, para os picaretas quânticos e para qualquer um que promova esses e outros tipos de negação ou deturpação violenta da ciência. Vale para pessoas públicas e vale para o anônimo cujo estrago é limitado aos grupos de WhatsApp da família. É contratestemunho puro, é expor a fé ao ridículo.
Certamente não foi para isso que Deus nos deu cérebro e inteligência.