Nesses dias em que falamos tanto do “tripé macroeconômico”, o blog quer propor a discussão sobre um outro tripé, aquele no qual se assenta a civilização ocidental. Mas, na verdade, a esse tripé se juntou uma quarta perna, e é isso que Joathas Soares Bello trata nesse artigo escrito para o blog. O autor, graduado em Filosofia pela Uerj, mestre em Filosofia pela PUC-Rio e doutor em Filosofia pela Universidad de Navarra (Espanha), é professor da Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro, do Instituto Filosófico e Teológico São José do Seminário Arquidiocesano de Niterói e da Faetec-RJ. Ele tem se dedicado, principalmente, ao estudo da filosofia da religião e ao aprofundamento e divulgação do pensamento do filósofo espanhol Xavier Zubiri, que soube unir, na sua obra, uma perspectiva profundamente metafísica ao conhecimento das ciências contemporâneas.
Os quatro pilares
Joathas Soares Bello
“O monoteísmo criacionista judaico-cristão e sua vitória sobre a religião e a metafísica do mundo antigo foi, sem dúvida, a primeira possibilidade fundamental para libertar a pesquisa sistemática da natureza. Significou libertar a natureza para a ciência de uma ordem de grandeza que talvez ultrapasse tudo o que, até hoje, já aconteceu no Ocidente. O Deus espiritual de vontade e de trabalho, o Criador, que não foi conhecido por nenhum grego e nenhum romano, por nenhum Platão e nenhum Aristóteles, foi (…) a maior santificação da ideia do trabalho e do domínio sobre as coisas infra-humanas; e, ao mesmo tempo, operou a maior desanimação, mortificação, distanciamento e racionalização da natureza que jamais ocorreu em relação às culturas asiáticas e à Antiguidade” (Max Scheler).
É um lugar comum, entre vários autores cristãos, a afirmação de que as três maiores obras do espírito humano são a filosofia grega, o direito romano e a religião judaico-cristã (descontando, aqui, o fato de que não se a considera uma obra exclusivamente humana). O filósofo espanhol contemporâneo Xavier Zubiri, no entanto, considera que a ciência moderna, que começou com Copérnico, Kepler e Galileu, também merece figurar entre as maiores obras do engenho humano. Os autores cristãos consideram que a filosofia grega e o direito romano foram providencialmente dispostos por Deus para preparar os caminhos dos pagãos à recepção da mensagem universal do cristianismo; isso foi feito através de conceitos filosóficos e jurídicos, especialmente o de “pessoa”, presente tanto entre os gregos como entre os romanos, mas que adquiriu uma profundidade e relevância muito maiores na doutrina e prática cristãs.
Entretanto, o conhecimento do mundo material não era tão valorizado na cultura clássica. Na realidade, os antigos tinham uma dupla atitude perante o mundo: por um lado, uma inspiração gnóstica conduzia ao desprezo da corporeidade e da temporalidade, entendidos como “queda” da eternidade; por outro lado, uma tendência panteísta levava a uma divinização da natureza, entendida como algo “sagrado”, “encantado”. Tanto a falta de consideração de uns quanto o excesso de reverência de outros impediam o surgimento do saber científico, e foi precisamente o cristianismo, com sua apreciação positiva da realidade material, dotada de bondade ontológica (“e Deus viu que tudo era bom”), porém criada e não divina (“no princípio Deus criou o céu e a terra”), e posta pelo seu Artífice aos cuidados da pessoa humana (que deve “guardá-la” e “nomeá-la”), que abriu caminho para o que viria a ser a ciência matematizante e experimental que tem seus primórdios na Escola de Oxford, no século 13, com Roberto Grosseteste e Roger Bacon, e começa a alcançar sua maturidade com Copérnico, no século 16.
Mas por que a ciência, como a conhecemos hoje, demorou tanto para surgir em solo cristão, uma vez que tinha um terreno propício? Foram duas as sínteses principais entre o pensamento grego e o cristão (que é um pensamento religioso e que, portanto, precisa do auxílio do pensamento racional para expressar suas intuições sobre a realidade natural): o pensamento cristão platonizante, cujo principal expoente foi Agostinho, e o pensamento cristão aristotelizante, cujo principal representante foi Tomás de Aquino. O platonismo tinha o instrumento (a matemática herdada do pitagorismo) para medir as realidades materiais, mas sua preocupação era mística; o aristotelismo tinha o interesse pela natureza, mas seu instrumento era uma filosofia qualitativa, em que a “física” (filosofia da natureza) na verdade era uma ontologia do movimento. Foi só quando o interesse aristotélico se casou com o instrumento platônico que a ciência pôde nascer. E isso se deu no fim da Idade Média, com o abandono da metafísica das essências universais por parte de Guilherme de Ockham, e a assunção de que o conceito era mero “nome” (“homem”) que congregava realidades similares (“Sócrates” e “Platão”) de essências individuais que não podem ser determinadas. Assim, na física nominalista, o termo se torna um símbolo da realidade, e não mais uma expressão da essência qualitativa ou formal. Está aberto o caminho para a matematização do conhecimento da natureza.
A ciência, contudo, não substitui o papel da filosofia, do direito e da religião, como costuma-se pensar. O filósofo alemão Immanuel Kant dizia que são quatro as questões que norteiam a vida humana: 1) Que posso eu saber? 2) Que devo eu fazer? 3) Que me é permitido esperar? 4) Quem é o homem? Aqui não me interessam as respostas de sua filosofia pessoal, mas a constatação de que tais perguntas realmente podem orientar a existência. Comecemos pela última: a ciência, em virtude de seu método, fica aquém do caráter pessoal, espiritual, do ser humano: temas como o da espiritualidade da inteligência ou o do significado do amor, por exemplo, só podem ser estudados pela filosofia, cuja evidência não se restringe ao que pode ser matematizado e experimentado. O que podemos esperar é uma questão que nos abre à dimensão religiosa da existência, ou seja, que nos remete ao sentido da vida e da morte, e à possibilidade de que o horizonte último da realidade se nos revele. O que eu devo fazer é uma questão que abre minha personalidade individual às demais pessoas, e me faz considerar meus direitos e deveres na sociedade, isto é, entramos na esfera do jurídico. Finalmente, à ciência cabe responder o que eu posso saber do mundo natural.
Assim, podemos resumir estes quatro pilares de nossa existência ocidental da seguinte forma: a ciência se refere ao mundo natural; o direito, ao mundo social; a filosofia, ao mundo pessoal; e a religião, ao sentido ou fundamento último, que sói ser chamado Deus. Toda a estrutura do real fica contemplada nessa esquematização, com o que vemos que não é casual o desenvolvimento desses pilares. A verdade é que quatro bases não nos garantem o equilíbrio das três primeiras (que formam necessariamente um só plano; aqui jogo com a geometria), mas a possibilidade do desequilíbrio (por exemplo, o positivismo cientificista que nega a filosofia e a religião) é compensada pela beleza e, por que não, utilidade da grandiosa ciência moderna!
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