Roberto Grosseteste e Roger Bacon estão entre os pensadores que abriram espaço para a ciência moderna. (Imagem: Reprodução)| Foto:

Nesses dias em que falamos tanto do “tripé macroeconômico”, o blog quer propor a discussão sobre um outro tripé, aquele no qual se assenta a civilização ocidental. Mas, na verdade, a esse tripé se juntou uma quarta perna, e é isso que Joathas Soares Bello trata nesse artigo escrito para o blog. O autor, graduado em Filosofia pela Uerj, mestre em Filosofia pela PUC-Rio e doutor em Filosofia pela Universidad de Navarra (Espanha), é professor da Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro, do Instituto Filosófico e Teológico São José do Seminário Arquidiocesano de Niterói e da Faetec-RJ. Ele tem se dedicado, principalmente, ao estudo da filosofia da religião e ao aprofundamento e divulgação do pensamento do filósofo espanhol Xavier Zubiri, que soube unir, na sua obra, uma perspectiva profundamente metafísica ao conhecimento das ciências contemporâneas.

CARREGANDO :)

Os quatro pilares

Joathas Soares Bello

Publicidade

“O monoteísmo criacionista judaico-cristão e sua vitória sobre a religião e a metafísica do mundo antigo foi, sem dúvida, a primeira possibilidade fundamental para libertar a pesquisa sistemática da natureza. Significou libertar a natureza para a ciência de uma ordem de grandeza que talvez ultrapasse tudo o que, até hoje, já aconteceu no Ocidente. O Deus espiritual de vontade e de trabalho, o Criador, que não foi conhecido por nenhum grego e nenhum romano, por nenhum Platão e nenhum Aristóteles, foi (…) a maior santificação da ideia do trabalho e do domínio sobre as coisas infra-humanas; e, ao mesmo tempo, operou a maior desanimação, mortificação, distanciamento e racionalização da natureza que jamais ocorreu em relação às culturas asiáticas e à Antiguidade” (Max Scheler).

É um lugar comum, entre vários autores cristãos, a afirmação de que as três maiores obras do espírito humano são a filosofia grega, o direito romano e a religião judaico-cristã (descontando, aqui, o fato de que não se a considera uma obra exclusivamente humana). O filósofo espanhol contemporâneo Xavier Zubiri, no entanto, considera que a ciência moderna, que começou com Copérnico, Kepler e Galileu, também merece figurar entre as maiores obras do engenho humano. Os autores cristãos consideram que a filosofia grega e o direito romano foram providencialmente dispostos por Deus para preparar os caminhos dos pagãos à recepção da mensagem universal do cristianismo; isso foi feito através de conceitos filosóficos e jurídicos, especialmente o de “pessoa”, presente tanto entre os gregos como entre os romanos, mas que adquiriu uma profundidade e relevância muito maiores na doutrina e prática cristãs.

Entretanto, o conhecimento do mundo material não era tão valorizado na cultura clássica. Na realidade, os antigos tinham uma dupla atitude perante o mundo: por um lado, uma inspiração gnóstica conduzia ao desprezo da corporeidade e da temporalidade, entendidos como “queda” da eternidade; por outro lado, uma tendência panteísta levava a uma divinização da natureza, entendida como algo “sagrado”, “encantado”. Tanto a falta de consideração de uns quanto o excesso de reverência de outros impediam o surgimento do saber científico, e foi precisamente o cristianismo, com sua apreciação positiva da realidade material, dotada de bondade ontológica (“e Deus viu que tudo era bom”), porém criada e não divina (“no princípio Deus criou o céu e a terra”), e posta pelo seu Artífice aos cuidados da pessoa humana (que deve “guardá-la” e “nomeá-la”), que abriu caminho para o que viria a ser a ciência matematizante e experimental que tem seus primórdios na Escola de Oxford, no século 13, com Roberto Grosseteste e Roger Bacon, e começa a alcançar sua maturidade com Copérnico, no século 16.

Mas por que a ciência, como a conhecemos hoje, demorou tanto para surgir em solo cristão, uma vez que tinha um terreno propício? Foram duas as sínteses principais entre o pensamento grego e o cristão (que é um pensamento religioso e que, portanto, precisa do auxílio do pensamento racional para expressar suas intuições sobre a realidade natural): o pensamento cristão platonizante, cujo principal expoente foi Agostinho, e o pensamento cristão aristotelizante, cujo principal representante foi Tomás de Aquino. O platonismo tinha o instrumento (a matemática herdada do pitagorismo) para medir as realidades materiais, mas sua preocupação era mística; o aristotelismo tinha o interesse pela natureza, mas seu instrumento era uma filosofia qualitativa, em que a “física” (filosofia da natureza) na verdade era uma ontologia do movimento. Foi só quando o interesse aristotélico se casou com o instrumento platônico que a ciência pôde nascer. E isso se deu no fim da Idade Média, com o abandono da metafísica das essências universais por parte de Guilherme de Ockham, e a assunção de que o conceito era mero “nome” (“homem”) que congregava realidades similares (“Sócrates” e “Platão”) de essências individuais que não podem ser determinadas. Assim, na física nominalista, o termo se torna um símbolo da realidade, e não mais uma expressão da essência qualitativa ou formal. Está aberto o caminho para a matematização do conhecimento da natureza.

Publicidade

A ciência, contudo, não substitui o papel da filosofia, do direito e da religião, como costuma-se pensar. O filósofo alemão Immanuel Kant dizia que são quatro as questões que norteiam a vida humana: 1) Que posso eu saber? 2) Que devo eu fazer? 3) Que me é permitido esperar? 4) Quem é o homem? Aqui não me interessam as respostas de sua filosofia pessoal, mas a constatação de que tais perguntas realmente podem orientar a existência. Comecemos pela última: a ciência, em virtude de seu método, fica aquém do caráter pessoal, espiritual, do ser humano: temas como o da espiritualidade da inteligência ou o do significado do amor, por exemplo, só podem ser estudados pela filosofia, cuja evidência não se restringe ao que pode ser matematizado e experimentado. O que podemos esperar é uma questão que nos abre à dimensão religiosa da existência, ou seja, que nos remete ao sentido da vida e da morte, e à possibilidade de que o horizonte último da realidade se nos revele. O que eu devo fazer é uma questão que abre minha personalidade individual às demais pessoas, e me faz considerar meus direitos e deveres na sociedade, isto é, entramos na esfera do jurídico. Finalmente, à ciência cabe responder o que eu posso saber do mundo natural.

Assim, podemos resumir estes quatro pilares de nossa existência ocidental da seguinte forma: a ciência se refere ao mundo natural; o direito, ao mundo social; a filosofia, ao mundo pessoal; e a religião, ao sentido ou fundamento último, que sói ser chamado Deus. Toda a estrutura do real fica contemplada nessa esquematização, com o que vemos que não é casual o desenvolvimento desses pilares. A verdade é que quatro bases não nos garantem o equilíbrio das três primeiras (que formam necessariamente um só plano; aqui jogo com a geometria), mas a possibilidade do desequilíbrio (por exemplo, o positivismo cientificista que nega a filosofia e a religião) é compensada pela beleza e, por que não, utilidade da grandiosa ciência moderna!

——

Você pode seguir o Tubo de Ensaio no Twitter e curtir o blog no Facebook!

Publicidade