A distopia de ficção científica "Um cântico para Leibowitz" ressuscita os copistas e lhes dá uma função crucial para o futuro da humanidade. (Imagem: Reprodução)| Foto:

Eu gosto bastante de distopias, embora não tenha lido ou visto tantas assim, e precise reler umas outras (eu era adolescente, por exemplo, quando li Admirável mundo novo). Recentemente, terminei duas: O senhor do mundo, de Robert Hugh Benson (escrito em 1907 e assustadoramente profético), e Um cântico para Leibowitz (Aleph, 2014; 400 páginas), de Walter Miller Jr. E foi só durante sua leitura que percebi que valia uma resenha aqui para o blog. Depois, ainda, descobri que essa obra tem bastante reputação entre os fãs de ficção científica, e até por isso acho curioso ela nunca ter sido adaptada para cinema ou televisão, apenas para o rádio.

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Antes de se converter ao catolicismo, Miller lutou na Segunda Guerra Mundial, tendo integrado tripulações de bombardeiros e feito parte da polêmica destruição do mosteiro de Monte Cassino, na Itália, o “marco zero” da ordem beneditina, tendo sido fundado pelo próprio São Bento. E Um cântico para Leibowitz se passa justamente em um mosteiro da fictícia Ordem Albertina, localizado no deserto norte-americano, em algum ponto entre o que hoje são os estados de Utah e Colorado. No século 20, uma guerra nuclear e a contaminação posterior (chamadas, no livro, de “Dilúvio de Fogo” e “Precipitação Radioativa”) destruíram praticamente o mundo inteiro. Os sobreviventes, então, revoltados com o que havia acontecido, promoveram a “Simplificação”: o expurgo e perseguição dos cientistas que haviam tornado possível a evolução dos armamentos, que acabou se generalizando para a caça a qualquer intelectual.

Alguns dos perseguidos conseguiram refúgio nas igrejas e abadias. Isaac Leibowitz foi um deles; abrigado pelos cistercienses, resolveu tornar-se um deles após ter certeza de que sua esposa tinha morrido na guerra, e depois decidiu fundar uma ordem dedicada a Santo Alberto Magno, padroeiro dos cientistas, cujos monges coletariam e armazenariam o que quer que houvesse sobrado do conhecimento científico e que não tivesse sido destruído na catástrofe nuclear ou na Simplificação. Entre os monges haveria copistas, encarregados de copiar tudo o que fosse encontrado, para que resistisse ao tempo; e memorizadores, que decorariam os conteúdos (pensou em Fahrenheit 451? Eu também) caso o acervo físico do mosteiro, chamado de Memorabilia, caísse nas mãos da turba destruidora (esse acabou sendo o destino do próprio Leibowitz, traído e martirizado). Esse trabalho seria feito ainda que os monges não compreendessem absolutamente nada daquilo que copiassem ou memorizassem; no futuro, confiavam, alguém haveria de encontrar um sentido para todas aquelas informações, e enquanto isso não acontecia caberia a eles a tarefa de preservá-las. O livro tem três partes, separadas por vários séculos. A primeira delas começa cerca de 600 anos depois da guerra e da Simplificação, e mais não digo sobre o enredo para não tirar a graça da leitura.

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Se a ideia de monges trabalhando para recuperar conhecimento perdido de uma civilização anterior lhe parece bem familiar, é porque o caráter cíclico da história da humanidade é um dos temas importantes do livro. Na breve pesquisa que fiz após terminar a leitura, vi que as resenhas costumam enfatizar, como assunto relevante, as relações entre Igreja e Estado, que de fato aparecem mais na segunda e terceira partes. Mas é a relação entre ciência e fé que permeia boa parte do livro, a começar pelo seu próprio pressuposto, o de que, se no passado a Igreja foi a responsável por preservar o conhecimento filosófico greco-romano, no futuro seria também a Igreja a conservar o conhecimento científico da civilização moderna. Diversos outros temas e situações também estão presentes, como o desdém dos “novos intelectuais” pela fé religiosa, a participação de religiosos entre os pioneiros de uma Revolução Científica, o papel da religião como bússola moral diante de um desenvolvimento científico sem reflexão ética, e a maneira como os historiadores do futuro reconheceriam (ou não, melhor dizendo) a ação da Igreja na preservação do conhecimento, prevista em uma conversa meio profética entre o abade dom Paulo e um velho amigo judeu.

Tudo isso não deixa de ser curioso, se pensarmos que em 1960, quando Um cântico para Leibowitz foi publicado pela primeira vez, o Novo Ateísmo ainda não tinha aparecido para radicalizar o discurso antirreligioso, mas o trabalho de historiadores que resgataram a verdade histórica sobre o papel das religiões no progresso técnico-científico do Ocidente ainda estava em seus primórdios. O paradigma reinante ainda era aquele de Draper e White, com suas mentiras a respeito de uma hostilidade da religião (e, especificamente, da Igreja Católica) à ciência.

Então, se você curte distopias, ficção científica ou quer ler sobre ciência e fé, mas descansando das argumentações profundas ou das análises bíblicas, dê uma chance ao Leibowitz. Um enredo interessante, com humor e mutantes: não tem como dar errado!

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