Nesses tempos em que estamos falando de criacionismo nas escolas (e ainda falaremos mais do assunto), é ótimo poder divulgar um livro para um público que me parecia carente de materiais desse tipo: os professores de Ensino Religioso. A editora Paulinas tem uma parceria com a PUC-SP para uma coleção de livros dirigidos justamente para esses docentes. Meses atrás, a coleção cresceu: o professor Eduardo Cruz, que conheci em 2011 na Cidade do México, escreveu Religião e ciência. É este o livro que resenhamos hoje e que eu recomendo para quem dá aulas dessa disciplina no ensino fundamental ou médio, mas também serve a qualquer interessado no tema.
Religião e ciência, no entanto, não é um guia prático sobre temas específicos. O leitor não vai encontrar, por exemplo, explicações detalhadas sobre evolução, criacionismo ou Design Inteligente e sua compatibilidade (ou não) com a fé religiosa; ou sobre temas de bioética, neurociência, milagres, astronomia e aspectos históricos da relação entre ciência e religião. No máximo, haverá uma pincelada aqui e outra ali, por exemplo sobre o criacionismo bíblico ou o caso Galileu; e, para alguns desses temas, haverá recomendações bibliográficas que o leitor pode buscar para aprofundar seus conhecimentos. O objetivo do livro é familiarizar o professor com os pressupostos do debate sobre a relação entre fé e ciência, principalmente para que ele entenda como chegamos ao ponto atual, em que o discurso do conflito parece predominar.
É justamente com esse discurso que Cruz inicia o livro. O autor mostra os principais representantes dessa corrente atualmente, e as origens desse paradigma na nossa velha conhecida dupla John Draper e Andrew White, mas também lembra que a defesa do conflito não é exclusividade do ateísmo militante, e também ocorre entre fundamentalistas religiosos. O capítulo inicial já esboça uma explicação, que será aprofundada mais adiante no livro, dos fundamentos filosóficos que baseiam o paradigma do conflito, a disputa pelo monopólio da verdade, a discussão sobre que conhecimentos são válidos ou não, e até mesmo a questão epistemológica, definida por Cruz como “sobre o que mesmo estamos falando?” Por isso, o livro segue com um capítulo que definirá com mais precisão o que é ciência, o que é religião e o que é teologia. Essas definições são importantes especialmente quando se observam tentativas de reduzir a religião a “mera mitologia” ou “mero código moral”, quando na verdade as religiões são fenômenos bem mais complexos. Aqui Cruz nos recorda o pensamento positivista, que vai alimentar o discurso do conflito ao propor o fim de uma “era da religião”, que dará lugar a uma “era da ciência”. O autor ainda nos apresenta os princípios da relevância e da neutralidade, que podem ajudar a entender a relação entre o conhecimento revelado e o conhecimento adquirido pela ciência, e as primeiras reações (nem sempre felizes) à revolução científica iniciada nos séculos 16 e 17.
A seguir, o livro descreve o avanço do método experimental e o que ele trouxe consigo do ponto de vista filosófico e social: uma concepção mecanicista do mundo e da natureza; a crescente secularização no meio científico e, depois, na sociedade como um todo; a redução do papel da religião, até o ponto em que ela passou a ser vista como fator de atraso social. Tudo isso formou o caldo que levou ao cientificismo, que tanto já criticamos aqui no blog. É a partir deste ponto que surgem duas correntes: o neoateísmo de autores como Richard Dawkins e Daniel Dennett e os “magistérios não interferentes” de Stephen Jay Gould. Cruz mostra os pontos fracos de ambas as abordagens, e aqui vemos a importância de ter definido corretamente a religião no início do livro, pois ambas as propostas são exemplos daquele reducionismo de que falamos.
Mas nem por isso as tentativas de promover uma harmonia entre ciência e fé são todas aceitáveis e devem ser encorajadas. Cruz analisa alguns fenômenos como a “mania quântica”, que busca encontrar evidências de espiritualidade no caráter indeterminado das partículas do mundo subatômico; na outra ponta, o uso inadequado das descobertas da cosmologia com finalidades teológicas; e, por fim, as teses criacionistas e do DI. Mas ressalta o que, em sua opinião, são os caminhos mais adequados para um diálogo frutífero, que supera a mistura infértil na qual teólogos agem como cientistas e vice-versa. O autor destaca especialmente a reconstrução histórica (diria eu, uma “comissão da verdade” da relação entre ciência e fé, para esclarecer de vez o que realmente houve no passado; felizmente, muitos bons historiadores estão se dedicando a isso para apagar os mitos propagados por Draper e White), o debate filosófico sobre o que e como o ser humano pode conhecer, e a bioética como campo em que o avanço científico pode ser matizado pela reflexão ética, especialmente aquela que tem como base a dignidade do ser humano.
Não sei quantos professores de Ensino Religioso tratam da relação entre ciência e fé em suas aulas. Para aqueles que abordam o assunto, o livro vale a pena. Para os que ainda não o fazem, pode ser um estímulo. Mas espero também que a coleção das Paulinas incorpore, no futuro, algo que trate especificamente daqueles temas que citamos lá no começo, pois aqueles estudantes que têm uma fé religiosa, quando apresentados a temas como a evolução ou o Big Bang, nas aulas de Ciências, podem querer compreender como conciliar a ciência moderna com sua religião. Se os professores de Ensino Religioso estiverem preparados também para isso, ajudarão a criar uma geração futura que não será presa fácil do ateísmo militante.
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