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Em qualquer espectro humano, reparem bem que os extremos muitas vezes se tocam mais do que imaginaríamos. Extrema-esquerda e extrema-direita, na política; ou teólogos da libertação e tradicionalistas lefebvristas, no catolicismo; e o mesmo vale para os fundamentalistas religiosos e os fundamentalistas do ateísmo militante. Difícil é encontrar quem esteja num desses extremos e admita isso.

Mas foi o que aconteceu com Ken Ham, o líder do grupo criacionista de Terra jovem Answers in Genesis. No fim de julho, ele comentou, em seu blog, um programa de televisão do ateu militante Bill Maher, em que ele entrevistava o católico Ross Douthat. Em certo ponto do programa, Maher afirma que “se isso [a Bíblia] não é 100% verdadeiro, então eu diria que a coisa toda desanda”. Ham adorou a frase, e ficou maravilhado por ela ter vindo de alguém que escarnece publicamente da religião. E ainda cita, vejam só, Richard Dawkins, quando descreve o momento em que percebeu que não acreditava em Deus: “O mais importante foi compreender a evolução. Acho que os cristãos evangélicos estão certos em ver a evolução como o inimigo. Por mais que os teólogos mais, como diríamos?, sofisticados estão bem felizes convivendo com a evolução, eu acho que eles estão iludidos. Acho que os evangélicos é que têm razão, dizendo que há uma profunda incompatibilidade entre evolução e Cristianismo, e eu percebi isso com uns 16 anos”.

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Então temos um líder criacionista elogiando ateus militantes e criticando ferozmente outros líderes cristãos que conseguiram entender como há compatibilidade entre a evolução e o Cristianismo. Como eu disse lá no começo, são os extremos se abraçando.

Ao se referir aos cristãos que defendem a evolução, Ham afirma que eles “essencialmente dizem que o Gênesis não é confiável”. Isso, na melhor das hipóteses, é idiotice; na pior das hipóteses, é desonestidade da grossa. Ham confunde “ser verdadeiro” ou “ser confiável” com “ser 100% literal”. Qualquer cristão que se preze vai defender que a Bíblia é a palavra de Deus, e por isso 100% verdadeira, ou 100% confiável. Mas isso não significa que ela deva ser entendida 100% de modo literal, como pretende Ken Ham. E também não significa que as partes que devem ser interpretadas metafórica ou alegoricamente sejam menos verdadeiras ou menos confiáveis.

Para quem pensa como Ken Ham, há um desafio muito simples: harmonizar uma interpretação literal dos dois relatos da criação. Afinal, em Gn 1, primeiro Deus cria a luz e depois vêm, na ordem: o céu, o mar e a terra, plantas e árvores, o sol e a lua, os peixes e as aves, os animais terrestres, e só por último o homem, e depois a mulher. Mas, em Gn 2, 4-25, a ordem é diferente. Primeiro Deus cria o homem, depois o coloca no jardim, e só então cria as árvores, os animais (aos quais o homem dá nomes), e, por fim, a mulher. Ora, se ambos os relatos têm de ser interpretados de forma 100% literal, é impossível que ambos estejam corretos, pois a sequência da criação é diferente. Ou seja, um dos dois relatos está errado. E, se está errado, o edifício desaba.

É ridículo um cristão afirmar que a Bíblia só pode ser lida de forma 100% literal (até porque os cristãos, independentemente de denominação, defenderam interpretações alegóricas ou metafóricas do relato da criação por 1,9 mil anos; esse literalismo de Ken Ham é um fenômeno do século 20), assim como é ridículo um ateu vir dizer que os cristãos acreditam que um ofídio desenvolveu cordas vocais para enganar um ser humano, extrapolando para toda uma população as excentricidades de um grupo marginal (por mais barulho que faça). Quando digo que os ateus costumam interpretar a Bíblia de forma muito mais literal que a esmagadora maioria dos cristãos (no caso, para ridicularizar sua crença), temos outro exemplo de extremos que se tocam.

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