Bisão na caverna de Altamira, na Espanha: desenhos rupestres já davam pistas da existência, no homem pré-histórico, da curiosidade metafísica e do que viria a se tornar a curiosidade científica. (Foto: D. Rodríguez/Museo de Altamira)| Foto:

“Como? Por quê? Quero saber” – quem é pai de criança pequena conhece esses versinhos (os pais de crianças um pouquinho maiores já fizeram a transição da Galinha Pintadinha para O show da Luna). Mas a curiosidade não é privilégio das crianças; ela só muda um pouco com o tempo, e às vezes até se fixa no mesmo objeto, tornando-se apenas mais “sofisticada”. Todos temos nossas curiosidades, e dois amigos vivendo em Oxford, o nanocientista Andrew Briggs e o pintor Roger Wagner, compartilhavam algumas inquietações. Como é que uma frase do Salmo 110(111) – “magna opera Domini exquisita in omnes voluntates ejus”, ou “Grandes são as obras do Senhor, dignas de admiração de todos os que as amam” – tinha ido parar na porta do Laboratório Cavendish, da Universidade de Cambridge? Por que o prédio do Museu da Universidade de Oxford tinha relevos com referências religiosas? A busca pela resposta durou 16 anos e deu origem a um livro notável: A penúltima curiosidade, volume que integra a coleção Ciência e Fé Cristã da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência, em parceria com a editora Ultimato.

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Traduzir adequadamente o termo Ultimate não é tarefa simples. “Último” é uma possibilidade, mas sempre precisamos ter o cuidado de não dar a impressão de que estamos nos referindo a ordem ou precedência. “Definitivo”, “principal” ou “final” são outras alternativas (no caso do “final”, vale a mesma ressalta do “último”). A “última curiosidade”, então, é a mais importante de todas elas, a mãe de todas as curiosidades, a curiosidade-mor. Feita essa digressão, a tese central do livro é a de que existe uma “última curiosidade”, que é a curiosidade metafísica, o anseio de saber o que somos, de onde viemos, se há algo para além do que podemos ver, se existe um Deus, se há algo após a morte, qual o sentido disso tudo, por que estamos aqui. Essa curiosidade acompanha o ser humano desde a pré-história, como Briggs e Wagner mostram no início do livro, analisando as pinturas deixadas em vários sítios arqueológicos e algumas evidências de sepultamentos ritualizados. E essa “última curiosidade” permitiu que surgisse a “penúltima curiosidade” que dá nome ao livro: a curiosidade científica, de saber como o mundo funciona, como nós funcionamos, quais são as leis que regem a natureza e que padrões existem nela.

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Não é só isso: os autores defendem que, assim como a ave migratória que voa à frente da formação em V facilita as coisas para as outras aves, ou o ciclista que lidera o pelotão forma o vácuo no qual os demais competidores podem economizar energia, a “última curiosidade” estimula o florescer da “penúltima curiosidade”. É para demonstrar essa ideia que Briggs e Wagner nos levam por uma “história da curiosidade”, que amarra ciência, filosofia e teologia, iniciando na Grécia Antiga e terminando com James Clerk Maxwell, com um epílogo que trata de algumas novidades do século 20, como a mecânica quântica.

Durante essa viagem de mais ou menos 25 séculos, os autores nos mostram personagens que encarnaram, em maior ou menor grau, essa interação entre as duas curiosidades. Gente que buscava compreender a natureza (e, mais recentemente, fazer ciência propriamente dita) para glorificar a Deus, para se maravilhar com a perfeição de Suas obras, que buscava as leis da natureza por estar convicta de que Deus tinha criado um mundo racional e inteligível, que queria entender “a mente do criador”, que procurava encontrar as equações mais simples e elegantes por crer que Deus não poderia ter criado o mundo de outra forma. Não estamos falando de pessoas que faziam aquela má mistura entre ciência e religião, inserindo teologia onde a ciência deixa lacunas, por exemplo, e sim de grandes mentes que faziam boa ciência, sólida, embasada no método científico, sem enfiar Deus nas equações, mas guiadas por algo que vai além da curiosidade científica.

Muitos dos personagens são bastante conhecidos do leitor: desde os grandes filósofos gregos, passando pelos pais da Revolução Científica até os grandes nomes da ciência do século 19, estão praticamente todos lá: Platão, Aristóteles, os dois Bacon (Roger e Francis), Alberto Magno, Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, Darwin, Maxwell. Mas o livro reserva muitas surpresas ao leitor na forma de outros filósofos, religiosos e cientistas que viveram guiados pelas duas curiosidades e não são tão conhecidos quanto aqueles do primeiro grupo. Para mim, particularmente, quem chamou a atenção foi João Filopono, filósofo bizantino do século 6.º que recebe muito destaque no livro por ter sido o primeiro a oferecer uma crítica mais forte às teses de Aristóteles sobre a natureza (ou, pelo menos, o primeiro a fazer isso de forma convincente e relevante), abrindo o caminho para vários outros cientistas séculos depois. Um exemplo de sua contribuição foi a noção de ímpeto, para explicar o voo dos projéteis.

Mas, ainda que a “última curiosidade” tenha guiado a “penúltima curiosidade” por tanto tempo e em tantos lugares diferentes, houve quem quisesse forçar uma separação. Ainda na Grécia Antiga, o epicurismo partiu de intuições corretas – como a de que os deuses não tinham nada a ver com raios, terremotos e outros fenômenos naturais – para concluir que o estudo da natureza só valia a pena se fosse para eliminar inquietações de ordem religiosa. O grande divórcio ocorreu mesmo graças à mecânica de Newton. Não que o físico inglês tivesse essa intenção, pois ele mesmo era muito religioso; mas houve quem usasse sua obra para argumentar que, a partir dali, Deus se tornava desnecessário. Foi o caminho trilhado logo de início por David Hume e Voltaire, por exemplo, e que seria continuado por Augusto Comte e pelo marxismo até desembocar no cientificismo atual. Os autores, no entanto, são confiantes: assim como o novo Laboratório Cavendish, inaugurado poucas décadas atrás, manteve, agora em inglês, a inscrição do salmo 110(111), a “última curiosidade” continuará sempre a alimentar a “penúltima”, enquanto houver o que desperte no ser humano o desejo de conhecer mais.

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A penúltima curiosidade não é, assim, um livro sobre ciência e religião do tipo que nos acostumamos a ver. Em comum com outras obras sobre o tema, ele apresenta uma narrativa histórica. Mas não se propõe a explicar de forma teórica como religião e ciência se conciliam, nem de forma geral, nem em temas específicos; não é um livro “prescritivo”, em que os autores discorrem sobre como essa relação deveria ocorrer; também não é uma descrição de como a religião ajudou no florescimento da ciência, algo que vemos em trechos de Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental, de Thomas Woods, por exemplo. Tudo isso é bom e desejável, mas o livro de Briggs e Wagner é diferente: é a história de como uma “disposição interior” levou a outra, e isso é algo com que todos podemos nos identificar, seja qual for nossa religião, pois todos somos curiosos.

A edição brasileira do livro traz, ainda, um DVD com um documentário em que Briggs e Wagner rodam o mundo visitando os locais que foram importantes na vida de vários dos personagens do livro, o que é uma adição bastante interessante (a edição espanhola, que comprei um ano antes de o livro ser lançado no Brasil, não inclui o documentário). Ainda não vi o filme, mas de antemão recomendo à editora que encontre um jeito melhor de acondicionar o DVD, já que o meu veio solto dentro do livro. Confira abaixo um teaser do filme:

(Aviso: meu exemplar de A penúltima curiosidade foi cortesia da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência e da editora Ultimato)

Pequeno merchan

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