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Uma nova hipótese para a existência histórica de Adão e Eva
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Alguns leitores do blog sabem que divido com o Alexandre Zabot uma coluna de ciência e religião no Mensageiro de Santo Antônio, revista católica editada pelos franciscanos. Hoje trago uma adaptação do texto da coluna publicada na edição de junho da revista.

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Um tema controverso nas discussões sobre a compatibilidade entre o Cristianismo e a teoria da evolução proposta por Charles Darwin é a questão da existência história de Adão e Eva como um casal real. Na Igreja Católica, a partir do momento em que o Concílio Vaticano II, na constituição dogmática Dei Verbum, mencionou a necessidade de considerar os “gêneros literários” na interpretação das Escrituras, muitos teólogos e padres viram (incorretamente) no texto uma carta branca para afirmar que muita coisa na Bíblia era metáfora. Essa tendência de considerar tudo como metáfora atingiu especialmente a interpretação do Gênesis. Afinal, se a criação do mundo em seis dias era uma alegoria, por que a história de Adão e Eva também não o seria?

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Adão e Eva era um tema recorrente do pintor Lucas Cranach. E o pecado original é justamente o ponto mais difícil de conciliar com a possibilidade de uma multidão de “primeiros pais”.

No entanto, o último documento do Magistério a mencionar a origem do homem de uma forma mais explícita é a encíclica Humani Generis, de Pio XII, escrita em 1950. No texto, o Papa não se opõe às pesquisas sobre o evolucionismo, mas afirma que “os fiéis cristãos não podem abraçar a teoria de que depois de Adão tenha havido na terra verdadeiros homens não procedentes do mesmo protoparente por geração natural, ou, ainda, que Adão signifique o conjunto dos primeiros pais” (n. 37). Assim, Pio XII condena o poligenismo (a tese de que Adão e Eva fossem figuras simbólicas que representavam o primeiro grupo de seres humanos), favorecendo o monogenismo (a tese de que Adão e Eva eram um primeiro casal real).

Segundo Pio XII, o poligenismo traz um problema teológico: como ele seria compatível com o pecado original? Se Adão e Eva não existiram realmente, se havia um primeiro grupo com dezenas ou centenas de seres humanos, todos eles precisariam ter desobedecido a Deus, mas como ter certeza de que isso realmente aconteceu? Desde então, a Igreja não voltou a tratar do assunto. Mesmo o Catecismo da Igreja Católica, em seu capítulo sobre a criação do homem, parece favorecer a interpretação de que Adão e Eva foram um primeiro casal com existência real.

O problema é que as evidências biológicas tornam um pouco forçado imaginar que a espécie humana, depois de evoluir de um ancestral comum a outros primatas, tenha surgido apenas com um único primeiro casal. No entanto, o diretor do Instituto Faraday para Ciência e Religião da Universidade de Cambridge (Inglaterra), Denis Alexander, acredita ter encontrado uma solução satisfatória. Alexander é biólogo molecular e publicou, no início do ano, um texto sobre as implicações teológicas de a humanidade não descender apenas de um primeiro casal.

No início do artigo, o autor, que é protestante, oferece dados científicos sobre o surgimento dos humanos modernos na África e analisa a terminologia hebraica usada para designar o primeiro homem no Gênesis. Depois, ele apresenta um primeiro modelo de interpretação, segundo o qual o relato da criação do homem descreve um processo em que um grupo de humanos passa a tomar consciência da existência de um Criador, mas também passa gradativamente a desobedecê-Lo. Mas esse processo seria descrito usando um primeiro casal porque era a maneira mais fácil de fazer o leitor antigo entender o que havia acontecido. Alexander diz que o modelo até pode ser aplicado a acontecimentos ocorridos bem no início da espécie humana, quando havia apenas poucas centenas de casais significado que todos tivessem pecado – seria a interpretação mais adequada do ponto de vista do “poligenismo monofiletista”, defendido pelo falecido teólogo católico dom Estêvão Bettencourt, e que propunha um grupo inicial de vários casais, oriundos de um mesmo tronco evolutivo, e coesos, não dispersos. Mas o biólogo afirma que este modelo tem suas dificuldades, inclusive de conciliação com outros trechos da Escritura.

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Denis Alexander lança a hipótese de que Adão e Eva estavam mais para fazendeiros do Neolítico que para o primeiro casal do afresco de Michelangelo.

Por causa dessas dificuldades, Alexander propõe um segundo modelo. Nesta hipótese, Deus pode ter escolhido um casal real que viveu no Oriente Médio no período neolítico (que vai de cerca de 10000 antes de Cristo a 3000 antes de Cristo) para Se revelar de uma forma especial, e criar com esse primeiro casal uma relação especial. Esse casal, assim, passou a ter um conhecimento particular sobre Deus, tornando-se espiritualmente vivo de uma forma diversa dos demais humanos que existiam então, dando origem ao que depois se transformaria na fé judaica (ainda que pudessem existir rudimentos de espiritualidade entre os demais contemporâneos deste primeiro casal). Neste modelo, que chama de Homo divinus (obviamente não estamos falando de uma classificação taxonômica, e de algo mais semelhante ao Homo economicus ou ao Homo ludens) Alexander interpreta a afirmação de Adão sobre Eva (“ossos dos meus ossos e carne da minha carne”) não como o reconhecimento de que ela era um humano como ele, já que havia vários assim; mas de que ela compartilhava da mesma crença que ele – então, eles compartilhavam algo mais do que apenas a semelhança física.

Esse modelo parece tentador, já que defende a historicidade de Adão e Eva, mas também tem seus problemas. O biólogo afirma que nesta época a população humana variava de 1 milhão a 10 milhões, o que levanta questões sobre o Pecado Original. Alexander contorna o problema dizendo que, ao se revelar ao primeiro casal, Deus fez deles os chefes do gênero humano e, portanto, o pecado cometido por esse casal afetaria todos os demais, como uma “bomba atômica espiritual”, que explode em um ponto específico, mas contamina tudo o que está em volta. Com isso, toda a humanidade estaria manchada pelo pecado. O próprio Alexander admite que há um conflito entre este modelo e o que São Paulo escreve na Carta aos Romanos (5,12), e a teoria também não é compatível com a noção de Santo Agostinho sobre a transmissão do pecado original; Alexander termina afirmando que nenhum dos dois modelos deve ser considerado como obra acabada; eles podem e devem continuar sendo discutidos e aperfeiçoados.

Décadas antes de se tornar Papa Bento XVI, Joseph Ratzinger se debruçou sobre a questão da criação sob a ótica da evolução em um capítulo de seu livro Dogma e Anúncio. Ele não chega a detalhamentos como os de Denis Alexander, não entra no tema da historicidade do primeiro casal, mas oferece ótimas pistas para que os católicos compreendam o surgimento do homem. “A afirmação de que o homem foi criado por Deus de um modo específico, mais direto do que as coisas da natureza, significa, em expressão um pouco menos figurada, simplesmente que o homem foi querido por Deus de um modo específico: não só como um ser que existe, mas como alguém que conhece a Deus.” Para Ratzinger, o que constitui o ser humano é essa capacidade de se relacionar com o Criador. Por isso a ciência até pode dizer quando surgiu o Homo sapiens, biologicamente falando, mas não pode fixar “o momento da humanização”, diz Ratzinger. “A argila se tornou homem no momento em que um ser, pela primeira vez, embora do modo mais imperfeito, pôde formar o pensamento de Deus. O primeiro tu que – por mais balbuciante que tenha sido – foi dito a Deus por boca humana designa o momento no qual o espírito surgiu no mundo”, afirma. As reflexões de Alexander e Ratzinger podem ser um bom ponto de partida para que no futuro se chegue a uma compreensão melhor sobre o surgimento do homem.

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