Não é sempre que os maiores jornais do mundo publicam artigos de opinião sobre ciência e fé; então, quando algum deles rompe o silêncio, sempre é bom mencionar. O New York Times publicou, na sua edição impressa do domingo, dia 3 (o que não é pouca coisa), e dois dias antes em seu site, o artigo “What science can learn from religion”, do psicólogo David DeSteno. Mas, para quem trabalha com o diálogo entre fé e ciência, o texto é bem decepcionante, pra ser honesto.
Deixando de lado o primeiro parágrafo, que dá mais importância aos fundamentalistas que ao enorme trabalho sério que vem sendo feito para construir pontes entre ciência e fé, o autor vai nos dizer logo na sequência que é um cientificista. Não com essas palavras, claro, mas é algo que fica implícito ali ao dizer que “o método científico nos dá as melhores ferramentas [pelo menos não disse que eram as únicas…] para desvendar os segredos da natureza humana”. A coisa até parece que vai decolar quando DeSteno diz que a hostilidade está atrapalhando o avanço da ciência, mas, quando ele explica o motivo, vemos que sua visão da religião é bem pobrezinha.
DeSteno basicamente enxerga a religião, ou as religiões, como fontes de ensinamento moral e fatores de coesão em uma sociedade. Mas o artigo nem explora tanto assim esses conceitos, limitando-se a descrever as religiões como criadoras de “técnicas” que nos ajudam a viver melhor. Essas “técnicas”, como a meditação e certos rituais, atingem seu “objetivo” (fomentar o autocontrole ou o altruísmo) mesmo fora de um contexto religioso, de acordo com pesquisas recentes, algumas delas conduzidas pelo próprio DeSteno. E, basicamente, é isso que a ciência pode aprender com a religião, para citar o nome do artigo. Não duvido muito que, levando o raciocínio ao extremo, quando o aprendizado estiver completo e a ciência tiver conseguido estudar e “secularizar” todas as “técnicas para bem viver”, podemos nos livrar da religião de uma vez por todas.
Isso me lembra certos expoentes do conservadorismo que, dizem-me os amigos que leram bem mais do que eu, pregam o fortalecimento do cristianismo na Europa porque seus valores morais se contrapõem ao hedonismo secular ou ao fundamentalismo islâmico, ou porque a tradição cristã tem um grande valor histórico ao ser a fonte da civilização ocidental, ou por várias outras razões que são acessórias, mas que não são a essencial: o cristianismo tem de ser preservado porque é verdadeiro. Reduz-se o cristianismo a (de novo) uma fonte de ensinamentos morais, à arte sacra, ao seu papel histórico, assim como DeSteno reduz a religião a uma formidável inventora de técnicas mentais que funcionam para que levemos uma vida decente.
Sabemos que não é assim. A religião vai muito além do que pretende DeSteno: ela nos diz, sim, como devemos viver, nos ajuda a criar comunidades solidárias, mas isso é consequência do fato de a religião, antes disso tudo, fazer uma série de afirmações sobre Deus, sobre o universo e sobre o ser humano que são centrais para a nossa existência, e que farão toda a diferença caso estejam certas ou erradas. E o método científico não nos diz nada sobre a alma, nem sobre a relação entre Deus e a criação, nem sobre a santidade, que exige um heroísmo impossível de estimular por meio das “técnicas religiosas secularizadas” de DeSteno. Religião e ciência têm muito a aprender uma com a outra, mas não é desse jeito.
Pequeno merchan
Além de editor e blogueiro na Gazeta do Povo, também sou colunista de ciência e fé na revista católica O Mensageiro de Santo Antônio desde 2010. A editora vinculada à revista lançou o livro Bíblia e Natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé, uma compilação que reúne boa parte das colunas escritas por mim e por meus colegas Alexandre Zabot, Daniel Marques e Luan Galani ao longo de seis anos, tratando de temas como evolução, história, bioética, física e astronomia. O livro está disponível na loja on-line do Mensageiro.
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