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Quando (e se) tivermos vacina contra o coronavírus, vai haver muita gente torcendo o nariz para a vacina, seja por motivos inventados e teorias da conspiração (microchip? Sério?), seja por algum ceticismo razoável (por exemplo, o fato de a vacina ter sido elaborada em tempo recorde). Mas pelo menos um tipo de objeção de consciência terá de ser levado seriamente em consideração, e talvez até analisado nos tribunais em caso de vacinação obrigatória: se as vacinas que vencerem a corrida forem aquelas que usaram linhagens celulares de fetos abortados em sua preparação, imagino que não serão poucos os que recusarão a tomá-la.
A preocupação com as questões éticas envolvendo a corrida pela vacina contra a Covid-19 já foi levantada por bispos católicos dos Estados Unidos, do Canadá (em carta assinada também pelo presidente da conferência nacional de bispos ortodoxos), da Austrália (em conjunto com as igrejas Anglicana e Ortodoxa Grega), e da Inglaterra e País de Gales, isso do que chegou ao meu conhecimento.
Como funciona o uso de células de fetos abortados na produção de vacinas
Alguns esclarecimentos sobre o uso das “linhagens de células de fetos abortados” são necessários para não se espalhar informação errada. Por exemplo, não existe nenhum feto sendo abortado neste momento para se retirar células que serão usadas no desenvolvimento das vacinas contra o coronavírus. Estamos falando, especificamente, de dois seres humanos: uma menina abortada na Holanda, em 1972, cujas células renais deram origem à linhagem HEK-293; e um bebê de 18 semanas de gestação, abortado em 1985, e cujas células da retina (sim, fetos de 18 semanas já têm a retina formadinha) levaram à linhagem PER.C6. O cientista holandês Alex van der Eb, em cujo laboratório surgiram ambas as linhagens, conta a história delas em depoimento à Food and Drug Administration norte-americana realizado em 2001. Nas páginas 81 e 91, ele confirma que nos dois casos tratou-se de aborto provocado, e não de aborto espontâneo (que em inglês é miscarriage).
Várias das vacinas que estão em estágios mais avançados de teste usam uma dessas duas linhagens, incluindo a vacina da Universidade de Oxford/AstraZeneca, que usa a HEK-293. Elas não são as únicas linhagens de células fetais usadas pela indústria farmacêutica; há muitas outras (veja esta lista compilada pela Universidade Georgetown), mas apenas a HEK-293 e a PER.C6 estão sendo empregadas na busca de uma vacina contra o coronavírus.
As células retiradas desses fetos foram “imortalizadas”: geneticamente modificadas para se reproduzirem indefinidamente (o caso mais famoso, provavelmente, é da linhagem HeLa, que vem de uma paciente de câncer; sua história foi contada no best-seller A vida imortal de Henrietta Lacks). Em tese, portanto, as células usadas hoje provavelmente nem são as “originais”, digamos, que estavam presentes nos bebês abortados (o que não atenua em nada a imoralidade do ato que deu origem a tais linhagens); e, também em tese, essa “imortalização” torna desnecessário recorrer a tecidos resultantes de novos abortos. Em tese, porque na prática continua a haver demanda por tecidos humanos obtidos por meio do aborto, como demonstra o professor Kyle McKenna em um paper sobre o uso de linhagens como a HEK-293.
Se você ler em algum lugar que andam abortando bebês para se poder obter células para produzir vacina contra a Covid-19, é fake
Mas onde entram, afinal, essas linhagens na produção das vacinas? Vejamos o caso da vacina da Universidade de Oxford. Os cientistas pegaram um adenovírus (um vírus mais comum, que pode causar resfriado ou bronquite) que infecta chimpanzés. Ele é enfraquecido e geneticamente modificado com uma proteína do coronavírus Sars-CoV-2, a tal spike, que o coronavírus usa para entrar em nossas células. No laboratório, esse adenovírus modificado é colocado em contato com as células HEK-293; nessas células, os vírus se multiplicam em enormes quantidades e permanecem no meio de cultura. Todo esse material é, depois, recolhido e “separado”: adenovírus modificado pra um lado, células HEK-293 do outro. Os vírus enfraquecidos é que se tornarão a vacina (que, portanto, não contém nenhuma célula HEK-293). Quando ela é injetada em uma pessoa, o corpo identifica a presença de um ser estranho, aprendendo a atacar e destruir a proteína spike. Assim, se um dia a pessoa vacinada entrar em contato com o coronavírus Sars-CoV-2, o corpo já saberá como responder.
Concluindo: se você ler em algum lugar que andam abortando bebês para se poder obter células para produzir vacina contra a Covid-19, é fake. Se você ler em algum lugar que as vacinas contêm células de fetos abortados, mesmo aqueles de 1972 e 1985, é fake também.
Há alternativas ao uso de linhagens celulares provenientes de fetos abortados?
Nem todas as vacinas sendo desenvolvidas usam linhagens derivadas de fetos abortados; há dezenas de iniciativas que dispensam esse recurso – a organização Children of God for Life, que faz campanha por vacinas produzidas eticamente, tem uma lista atualizada, com fontes para se checar as informações, mas ela me parece incompleta; a vacina russa Sputnik V, por exemplo, não aparece ali.
E, se há outros meios de chegar à vacina, o que a HEK-293 tem de tão singular ou extraordinário para levar os cientistas a recorrer a ela com tanta frequência? No seu paper, McKenna diz que essa linhagem é especialmente propícia para executar os processos que levam à vacina. A virologista Angela Rasmussen, da Universidade Columbia, afirma basicamente a mesma coisa ao Science News. “Não são muitas as linhagens humanas disponíveis e seguras para desenvolvimento de vacinas. A HEK-293 é conhecida e utilizada há décadas para este fim”, explica Cláudia Batista, professora de Embriologia e Neuroembriologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “As linhagens fetais têm grande plasticidade, se mantêm em cultura indefinidamente sem os problemas de outras linhagens”, acrescenta.
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Há, ainda, uma questão prática, segundo a professora da UFRJ: “levaria muito mais tempo para desenvolver outra linhagem humana para fazer a vacina contra a Covid-19”. É interessante reparar que as vacinas consideradas éticas na lista da Children of God for Life usam, em sua grande maioria, células de animais ou técnicas diferentes, como o mRNA; apenas duas usam uma linhagem humana não proveniente de aborto, a K562, e só uma delas, a da BioNTech/Pfizer, está na fase 3, de testes em larga escala (atualização: a vacina da Pfizer usou a linhagem HEK-293 na fase final de testes, realizada após a publicação deste texto). Na mesma reportagem da Science News, o imunologista Matthew Koci, da Universidade do Estado da Carolina do Norte em Raleigh, diz que no futuro pode-se até pensar em vacinas contra a Covid-19 feitas com outros “ingredientes”, mas neste momento é preciso usar o que houver de mais próximo ao corpo humano.
Por mais que haja muita notícia falsa sobre o uso das linhagens de células de fetos abortados, o que eu vi nas checagens de boatos também preocupa, pois as agências verificadoras dão a impressão de que o uso dessas linhagens é algo que não gera nenhum tipo de inquietação ética entre cientistas, ou de que o Vaticano deu carta branca ao uso de vacinas que empregam tais linhagens. Pois isso, dito assim, sem as ressalvas e as nuances, também é fake.
Os princípios éticos e a resposta católica
O fato de haver outras vacinas produzidas com linhagens oriundas de fetos abortados levou a Igreja Católica a se pronunciar sobre o tema bem antes da pandemia. Mas os princípios aplicados nos documentos do Vaticano não são exclusividade católica, pois não têm um caráter religioso: são de ordem puramente ética e podem muito bem ser empregados por qualquer pessoa pró-vida, independentemente de religião.
O tema central é o da “colaboração com o mal”. Os abortos que permitiram a retirada das células posteriormente cultivadas foram atos intrinsecamente maus, mas há diversos graus de cooperação até que se chegue ao consumidor de uma vacina produzida com a ajuda dessas linhagens. O que é lícito e o que não é?
Em 2003, a Children of God for Life enviou uma consulta à Congregação para a Doutrina da Fé, respondida apenas em 2005 por Elio Sgreccia, então presidente da Pontifícia Academia pela Vida, um bispo cujas credenciais na defesa do nascituro são inegáveis. Depois de defender as campanhas de vacinação universal contra doenças como a rubéola, Sgreccia entra na questão ética das vacinas produzidas a partir de linhagens extraídas de fetos abortados, e passa a explicar as diferentes formas de “cooperação com o mal”, começando pela distinção entre cooperação formal (a participação direta no ato imoral, compartilhando da sua intenção) e material (a cooperação sem a intenção); esta última divide-se em imediata (a colaboração com o ato propriamente dito) e mediata (quando não se participa do ato, mas se cria as condições para que o mal seja praticado), próxima ou remota (no tempo ou na conexão material). Além disso, há a distinção entre colaboração ativa (quando se participa do ato imoral) ou passiva (um ato de omissão que permite o cometimento da ação má), que por sua vez também pode ser formal ou material, imediata ou mediata, próxima ou remota etc.
“As linhas celulares usadas atualmente estão muito distantes do aborto original e já não implicam a cooperação moral indispensável para uma avaliação ética negativa sobre seu uso.”
Trecho de documento de 2017 da Pontifícia Academia para a Vida
A partir daí, Sgreccia vai analisando que tipo de cooperação se aplica a cada pessoa envolvida no ciclo que vai da extração das células fetais até a aplicação da vacina. No caso de quem recebe a imunização para se proteger, Sgreccia afirma que se trata de uma cooperação material (lembrando: não intencional) mediata (lembrando: indireta), mas muito remota, e por isso extremamente atenuada, no ato original do aborto; de cooperação material mediata no ato de difundir o uso de células fetais; e de cooperação material imediata (direta) na difusão daquela vacina em específico. Mas o mais complicado, diz o bispo, é a questão da cooperação passiva.
Isso significa que a comunidade pró-vida não pode ficar calada, sob pena de trivializar o uso de células derivadas de abortos na indústria farmacêutica. Existe uma obrigação de pressionar laboratórios e governos para que produzam e adquiram apenas vacinas eticamente produzidas. Quando tais vacinas estão disponíveis, os indivíduos têm a obrigação de usá-las em vez das vacinas feitas a partir de células fetais; não existindo tal alternativa, podem tanto recorrer à vacina oriunda de pesquisa com fetos abortados quanto exercer seu direito à objeção de consciência. Sgreccia afirma que, se a escolha por não se vacinar pode causar danos significativos às pessoas e à comunidade como um todo, há razões suficientes e legítimas para se vacinar mesmo quando a origem da vacina está nas linhagens de fetos abortados; no caso da rubéola, por exemplo, este perigo é enorme (quando contraída na gravidez, ela traz inúmeros riscos para mãe e filho), justificando o recurso à vacina.
Três anos depois, em 2008, com aprovação do papa Bento XVI, a Congregação para a Doutrina da Fé publicou a instrução Dignitas personae, que tratou das vacinas nos parágrafos 34 e 35. Ali, reafirma-se basicamente o que Sgreccia escreveu sobre os diferentes graus de participação no ato imoral; sobre o enorme risco de se banalizar o uso das linhagens de células de fetos abortados; sobre a obrigação de pressionar por alternativas (no caso dos indivíduos) e de buscá-las (no caso de governos e indústria farmacêutica); e sobre as circunstâncias que atenuam ou eliminam a responsabilidade do recurso às vacinas produzidas de forma antiética: “razões graves poderiam ser moralmente proporcionadas para justificar a utilização do referido ‘material biológico’. Assim, por exemplo, o perigo para a saúde das crianças pode autorizar os pais a utilizar uma vacina, em cuja preparação foram usadas linhas celulares de origem ilícita, permanecendo firme o dever da parte de todos de manifestar o próprio desacordo em matéria e pedir que os sistemas sanitários disponibilizem outros tipos de vacina”, diz a declaração.
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Diante de uma queda considerável na cobertura vacinal contra certas doenças na Itália, a Pontifícia Academia para a Vida voltou a publicar um documento sobre o tema, em 2017, na qual faz algumas revisões no texto de 2005. Afirma, por exemplo, que “as linhas celulares usadas atualmente estão muito distantes do aborto original e já não implicam a cooperação moral indispensável para uma avaliação ética negativa sobre seu uso”; que “as características técnicas da produção das vacinas mais comumente aplicadas em crianças nos levam a excluir a existência de uma colaboração moralmente relevante entre os que usam tais vacinas hoje e a prática do aborto voluntário”, e que por isso “acreditamos que todas as vacinas clinicamente recomendadas podem ser usadas com consciência tranquila, e que seu uso não significa nenhum tipo de colaboração com o aborto voluntário”. O documento enfatiza a dimensão comunitária da vacinação, afirmando que há uma “obrigação moral de garantir a cobertura vacinal necessária para a segurança dos demais”, especialmente de gestantes e dos que não podem ser vacinados pelos mais diferentes motivos – justamente a rubéola é uma das doenças cuja cobertura caiu para níveis perigosos na Itália.
CNBB estuda pedir a governos que ofereçam vacinas eticamente produzidas
Diante do dilema ético causado pela corrida por uma vacina contra o coronavírus, a Comissão Especial de Bioética da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) se adiantou e produziu um documento interno, enviado à presidência da entidade, em que reafirma todos os princípios presentes nos documentos do Vaticano. “A situação vai aparecer, as pessoas já estão falando, e tomamos a iniciativa de colocar nossos especialistas para trabalhar sobre o tema e produzir algo que sirva de orientação para os próprios bispos, até porque talvez nem todos tenham consciência dos detalhes envolvendo as vacinas e de quais são as atitudes lícitas ou ilícitas. Se a presidência achar oportuno, pode tornar o documento público”, afirma dom Ricardo Hoepers, bispo de Rio Grande (RS) e presidente da Comissão Especial de Bioética.
Dom Ricardo acredita que no Brasil deve ocorrer o mesmo que em outros países, onde os bispos pediram aos governos que ofereçam também as vacinas produzidas sem o uso de linhagens celulares oriundas de abortos, e diz que já houve um primeiro contato informal entre a CNBB e o Ministério da Saúde, embora ainda não haja nenhum posicionamento oficial do governo brasileiro. Sob esse ponto de vista, o bispo vê como positiva a decisão do Supremo Tribunal Federal que deu mais autonomia a estados e municípios na definição de políticas de combate à pandemia. “Imagine se o país inteiro tivesse de tomar apenas as vacinas compradas pelo governo federal, e essas tivessem origem eticamente ilícita. Será positivo se a população tiver acesso a vacinas diferentes, especialmente aquelas que não proporcionam dilemas éticos”, afirma, acrescentando que as regionais da CNBB também poderão se manifestar, procurando governadores e prefeitos.
“Claro, tudo isso depende de alguma das vacinas eticamente corretas ter sucesso, se mostrar confiável e segura”, esclarece. Se as únicas possibilidades aprovadas forem as vacinas obtidas a partir das linhagens celulares de fetos abortados, dom Ricardo, em linha com o Vaticano, afirma que é lícito tomar a vacina, mas também deve ser garantido o direito à objeção de consciência. “No momento estamos em uma lacuna subjetiva, ainda não há clareza sobre a efetividade da vacina, nem mesmo se ela será o melhor meio de conter a Covid-19. Neste contexto, não há como obrigar a usar algo sobre o qual não se tem clareza”, afirma.
“É lícito recorrer a essas vacinas enquanto não houver uma alternativa. Mas se a consciência de alguém o proíbe de usar uma vacina feita a partir das linhagens celulares de fetos abortados, essa opção tem de ser respeitada, e a pessoa tem de estar consciente dos riscos de saúde que isso envolve.”
Dom Ricardo Hoepers, presidente da Comissão Especial de Bioética da CNBB
E, mesmo se a vacina se mostrar a melhor (ou até mesmo a única) arma contra a pandemia, a consciência continua a ser o guia supremo. “Precisamos ser muito precisos nos termos para não dar margem a interpretações erradas, de que estamos estimulando comportamentos irresponsáveis. Que fique bem claro: é lícito recorrer a essas vacinas enquanto não houver uma alternativa, e é bom que a comunidade se proteja, até porque talvez nem todos possam tomar a vacina. Mas se, mesmo assim, a consciência de alguém o proíbe de usar uma vacina feita a partir das linhagens celulares de fetos abortados, essa opção tem de ser respeitada, e a pessoa tem de estar consciente dos riscos de saúde que isso envolve”, esclarece dom Ricardo. Daí a importância de haver alternativas eticamente corretas, para evitar o que Elio Sgreccia chamou, no documento de 2005, de “coerção moral sobre a consciência dos pais, forçados a escolher entre agir contra sua consciência ou colocar em risco a saúde de seus filhos e da população como um todo” – uma escolha que ninguém deveria ser obrigado a fazer.
O bispo ainda acrescenta que a controvérsia sobre as vacinas contra a Covid-19 precisa ser um catalisador para uma discussão mais ampla. “Com o tempo, criou-se uma situação confortável para a indústria farmacêutica, e a Covid despertou uma pressão sobre ela. Por que usar material biológico eticamente ilícito se há alternativas? Não falo só de vacinas ou medicamentos que usam linhagens de fetos abortados em seu desenvolvimento; por que usar células-tronco embrionárias se podemos usar as adultas?”, pergunta.
No fim das contas, havendo demanda, sempre haverá oferta. Enquanto a demanda for por algo que funcione logo, não importando como é feito, o caminho mais curto (e muitas vezes eticamente questionável) sempre será o mais usado. Mas, se a demanda for por vacinas, medicamentos e terapias que respeitem a dignidade da vida humana em todas as etapas de produção, mesmo que isso exija mais tempo e esforço, veremos uma mudança significativa na indústria farmacêutica.