No finzinho de 2020 (e no meio da minha folga de fim de ano), o Vaticano ainda achou tempo para soltar mais um documento a respeito das vacinas contra a Covid-19. Depois da nota da Congregação para a Doutrina da Fé, foi a vez da Pontifícia Academia para a Vida, em conjunto com a Comissão Vaticana Covid-19, com o que chamaram de “20 pontos para um mundo mais justo e saudável”, divulgados no dia 28. Boa parte do texto trata de questões como a distribuição das vacinas, a necessidade de evitar que os países pobres sejam deixados para trás, ou o estabelecimento racional de grupos prioritários na hora de receber a vacina. Alguns apelos devem cair no vazio, afinal os governos mundo afora estão tentando garantir logo o seu pirão porque a farinha por enquanto é pouca.
Mas, enfim, questões de logística e distribuição, ainda que muito relevantes, não nos interessam aqui. O que nos interessa é que mais uma vez o Vaticano trata do uso de linhagens celulares provenientes de fetos abortados, nos pontos 3 a 5, e também no ponto 13. Embora este texto basicamente repita o que vem sendo dito pelos organismos vaticanos sobre o tema, algumas coisas me incomodaram.
Achei, por exemplo, que faltou um apelo mais enfático pelo fim do uso de material biológico ilícito na pesquisa biomédica. O texto parece tratar o uso dessas linhagens celulares quase que como um fato consumado ao qual temos de nos resignar, em vez de reagir. É uma postura mais tímida que aquela adotada pela mesma PAV em 2005, no estudo assinado pelo bispo Elio Sgreccia. E, se existe algum ator neste mundo com um enorme peso moral para empregar neste tema, é a Igreja Católica. Não tivemos nenhum outro episódio na história recente em que o dilema sobre o uso de linhagens celulares de fetos abortados tenha ganho tanta divulgação. Antes de essa discussão aparecer motivada pelo coronavírus, quantos de nós, que vacinamos regularmente nossos filhos, procurávamos saber como foram produzidas as vacinas que nos oferecem na rede pública ou privada? Se não aproveitarmos este momento para deixar claro à indústria farmacêutica que precisamos de medicamentos e vacinas produzidos de forma ética, e que estamos recorrendo a vacinas que usam material ilícito apenas porque não há outra alternativa em uma situação de emergência, não sei se haverá oportunidade semelhante no futuro próximo. Espero sinceramente que a PAV retome o tema o quanto antes.
Se alguém se vê na posição de conseguir evitar a colaboração com uma ação intrinsecamente má como o aborto, e resolve fazê-lo, tendo claras as consequências de sua escolha, está no seu direito
Neste ponto, preciso fazer uma digressão e desviar da nota da PAV para comentar uma tendência que já verifiquei entre alguns bioeticistas ou teólogos católicos, como neste texto do Church Life Journal, da Universidade Notre Dame, em que o autor, Brett Salkeld, faz uma distinção entre vacinas que usam as linhagens oriundas de fetos abortados na produção ou apenas nos testes, alegando que essas últimas representam uma cooperação com o mal do aborto mais remota que aquelas primeiras. Não me parece que seja assim. Produção e teste são etapas do mesmo processo, com o mesmo objetivo: conseguir vacinas eficazes, seguras etc. etc. Não soa razoável afirmar que uma vacina seja menos antiética que outra apenas porque jogou para um estágio posterior o recurso ao material biológico ilícito.
(Observação 1: Só para dar nomes aos bois usando as vacinas aprovadas por alguma autoridade sanitária relevante ou que podem ser usadas no Brasil: as vacinas da Moderna e da Universidade de Oxford/AstraZeneca usaram linhagens HEK-293 na produção; as vacinas da Pfizer/BioNTech e Coronavac não usaram linhagens HEK-293 na produção, mas usaram nos testes.)
(Observação 2: De resto, recomendo a leitura do artigo de Salkeld, que serve para desfazer uma série de interpretações erradas, tanto para o lado rigorista quanto para o lado laxista, dos documentos do Vaticano. Mas a história de que a HEK-293 pode ter tido origem em um aborto espontâneo, e não provocado, me parece muito improvável, a julgar pelo depoimento de Alex van der Eb que citei no primeiro texto que publiquei aqui sobre o tema.)
O segundo aspecto que me preocupa no texto da PAV é que ele parece olhar meio torto para quem resolver exercer a objeção de consciência neste caso. O ponto 13 é onde isso fica mais evidente: “recusar a vacina pode também representar um risco aos demais. Isso também se aplica quando, na ausência de uma alternativa, a motivação é a de evitar beneficiar-se dos resultados de um aborto voluntário”. O documento, então, recorda o que já havia sido dito: não havendo alternativa, os católicos podem recorrer às vacinas que usaram linhagens de fetos abortados com a consciência tranquila, e conclui: “Por isso, tal recusa poderia aumentar seriamente os riscos para a saúde pública”.
Ninguém precisa vir me dizer que a vacina não é questão de proteção puramente individual, que ela tem uma dimensão social. Eu mesmo já expliquei no blog que sim, este é um pacto em comunidade: precisamos do maior número possível de pessoas imunizadas para que sirvam de barreira e impeçam que o vírus chegue aos que não podem tomar a vacina pelos mais diversos motivos (pouca idade, muita idade, alergias etc.). Então, é claro que quem voluntariamente não se vacina, pela razão que for, pode acabar se tornando vetor de contaminação para si e para os outros. Mas jogar a objeção de consciência dessa forma no meio da discussão traz um outro risco, que é o de fomentar uma versão “católica” do tal outdoor porto-alegrense que culpa a criança que foi à escola caso ela transmita o coronavírus para alguém que venha a morrer. Algo como “quer bancar o herói e recusar a vacina porque tem conexão com o aborto? Olha aí o que você vai provocar”. Neste sentido, o documento da Congregação para a Doutrina da Fé é bem melhor: reafirma o direito à objeção de consciência e apenas acrescenta que, nestes casos, há o dever moral grave de a pessoa adotar todas as outras medidas de prevenção para não colocar em risco a saúde dos outros.
“Quantos por motivos de consciência rejeitam as vacinas produzidas com linhas celulares derivadas de fetos abortados devem esforçar-se para evitar, com outros meios profiláticos e comportamentos idôneos, de se tornar veículos de transmissão do agente contagioso.”
Nota da Congregação para a Doutrina da Fé sobre vacinas contra a Covid-19, de 21 de dezembro de 2020.
Quando houver vacina por aqui, pretendo tomá-la – e, se não houver alternativa, infelizmente recorrerei a uma que tenha usado linhagens como a HEK-293, seja na produção ou nos testes. Mas vou respeitar a decisão daqueles que, guiados pela sua consciência, não queiram ter qualquer tipo de colaboração, mesmo não intencional, indireta e extremamente remota (porque essa colaboração continua existindo; a colaboração que não existe é a formal, como diz a Congregação para a Doutrina da Fé) com aquele aborto realizado em 1972, e recusem estas vacinas por este motivo – desde que não queiram forçar a sua opção sobre os demais católicos como se fosse a única ação moralmente aceitável, impondo-lhes um fardo que nem a Igreja quis impor.
Como lembra Salkeld, hoje é muito difícil não praticarmos algum tipo de colaboração involuntária com o mal. Podemos votar em alguém com a melhor das intenções, e o sujeito acaba atuando em favor de algo daninho. Ao comprar algo, podemos estar dando dinheiro para uma empresa que apoia uma causa contrária à dignidade humana – ou, então, quem garante que os produtos que compramos e vêm de um certo país não foram feitos usando trabalho escravo ou em condições degradantes que a Igreja condena? Mas não é porque essa colaboração é quase inevitável hoje que devemos nos sentir tranquilos ou justificados. Assim, se alguém se vê na posição de finalmente conseguir evitar a colaboração com uma ação intrinsecamente má como o aborto, e resolve fazê-lo, tendo claras as consequências de sua escolha, está no seu direito. Não contem comigo para jogar pedra nessas pessoas.
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