A notícia científica do mês (ainda é cedo pra dizer que é a notícia do ano, mas de cara é forte candidata) é o anúncio da descoberta de indícios fortíssimos de que realmente houve uma “inflação cósmica” nas primeiríssimas frações de segundo após o Big Bang. Para entender melhor a descoberta e sua repercussão, selecionei algumas reportagens da Folha, da Veja, da New Scientist e do Huffington Post britânico. A New Scientist, inclusive, montou um vídeo para explicar a descoberta usando uma toalha:
Claro que, com uma descoberta dessas, muitos querem saber que tipo de consequência isso pode ter sobre a fé das pessoas, e alguns já se pronunciaram a respeito do tema. Vejam, por exemplo, o caso de Nathan Aviezel, ou o de Hugh Ross e Leslie Wickman. Mas meu amigo Alexandre Zabot, astrônomo e professor da UFSC, não vê tanta razão para empolgação. “O Big Bang já estava mais do que confirmado. O que se descobriu agora foi muito importante para confirmar um ponto específico, que é a inflação cósmica. Mas o anúncio, em si, não acrescenta muita coisa à teoria, pois praticamente todos já davam o Big Bang por certo. Agora está mais certo ainda, e com uma certa ‘riqueza de detalhes’, por assim dizer. Eu particularmente não vejo razão para os religiosos darem pulos de alegria, porque só ficou mais confirmada uma coisa da qual já se tinha quase certeza: o universo teve um início”, diz Zabot, que é católico.
O problema que eu vejo está nessa associação íntima entre “início” e “criação”. Por um lado, por mais que Lawrence Krauss e Stephen Hawking tentem nos convencer do contrário, é impossível o universo ter surgido do nada sem um ato criador. Por outro lado, aprofundar nosso conhecimento sobre o início deste universo (digo “deste” porque, como sabemos, há teorias como o multiverso, ou de que pode haver um “Big Crunch”, uma contração do universo até o retorno ao ponto infinitamente minúsculo e denso, e o “nosso” Big Bang poderia ser o resultado de um Big Crunch anterior — mas isso são só teorias, deixemos bem claro) não necessariamente é a comprovação irrefutável da criação bíblica.
Isso nos remete ao “pai” do Big Bang, o padre belga Georges Lemaître, indicado em 1936 para a Pontifícia Academia de Ciências pelo papa Pio XI. Seu sucessor, Pio XII, tinha um grande interesse por temas científicos, e ficou encantado com a teoria de Lemaître a ponto de ver nela uma comprovação da existência de Deus. Em novembro de 1951, Pio XII fez um discurso à Pontifícia Academia de Ciências (infelizmente só achei a versão em italiano) em que discorre longamente sobre descobertas recentes da ciência e sua relação com as provas filosóficas da existência de Deus.
“De fato, a verdadeira ciência (…) quanto mais avança, tanto mais descobre a Deus, quase como se Ele estivesse esperando atrás de cada porta que a ciência abre.”
O papa se baseou em dois pontos específicos: a mutabilidade, ou instabilidade, do universo; e a organização que o caracteriza. Especialmente esse segundo ponto alarmou Lemaître. No discurso, Pio XII listava uma série de fatos científicos sobre o universo e a Terra, e acrescentava:
“Se essas cifras podem nos deixar atônitos, por outro lado ao mais simples dos crentes elas não trazem um conceito novo e diferente daquele contido nas primeiras palavras do Gênesis, ‘no princípio’, ou seja, o início das coisas no tempo. A essas palavras, elas [as cifras sobre o universo] dão uma expressão concreta e quase matemática.”
E prosseguia:
“É inegável que uma mente iluminada e enriquecida pelas modernas descobertas científicas, e que avalie esse problema serenamente, é levada a romper o cerco de uma matéria de todo independente e autóctone — ou porque incriada, ou porque criada por si mesma — e a chegar a um Espírito criador. Com o mesmo olhar límpido e crítico com o qual examina e julga os fatos, entrevê e reconhece a obra da onipotência criadora, cuja força, agitada pelo potente fiat pronunciado milhões de anos atrás pelo Espírito criador, se espalhou pelo universo, chamando à existência com um gesto de amor generoso a matéria exuberante de energia. Realmente parece que a ciência moderna, olhando para milhões de séculos atrás, conseguiu se tornar testemunha daquele primordial Fiat lux, pelo qual do nada irrompe, com a matéria, um mar de luz e radiação, enquanto as partículas químicas dos elementos se separam e se reúnem em milhões de galáxias.”
Mais para o fim do discurso, arrematava, dizendo que a ciência confirmava,
“com a concretude própria das provas físicas, a contingência do universo e a fundamentada dedução sobre a época em que o cosmo saiu das mãos do Criador. A criação no tempo, então; e, portanto, um Criador: Deus! É essa a voz, ainda que não explícita e nem completa, que Nós pedíamos à ciência, e que a atual geração humana espera dela.”
Isso não soava nada bem para o padre Lemaître, que desejava ver suas teorias científicas apreciadas pelo mérito puramente científico, e não por possíveis implicações metafísicas. Quando soube que Pio XII faria um novo discurso, desta vez à União Astronômica Internacional, o padre belga aproveitou uma viagem à África do Sul para fazer uma parada em Roma e conversar com o padre O’Connell, assessor do papa para temas científicos. Lemaître queria dissuadir o papa de usar o Big Bang como prova da existência de Deus. Pelo jeito funcionou, porque Pio XII nunca mais tocou no assunto.
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