No fim da tarde de hoje, o professor Waldemiro Gremski assumirá a reitoria da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) no lugar do irmão Ivo Clemente Juliatto. Hoje, a versão impressa da Gazeta do Povo tem uma entrevista mais ampla com Gremski, feita pelo repórter Jônatas Dias Lima. Mas, como o novo reitor da PUCPR também é um homem de ciência e fé, conversamos um pouquinho em seu gabinete, na segunda-feira. Como vocês podem ver pelo currículo Lattes, Gremski é graduado em História Natural, com doutorado em Histologia e pós-doutorados na Suécia e nos Estados Unidos. E é um católico convicto. Na infância, estudou em um seminário, de onde saiu para fazer faculdade. Na entrevista, que vocês conferem abaixo, falamos um pouco da sua carreira, de como as universidades podem ajudar a construir pontes entre ciência e religião, e sobre como a PUCPR vai lidar com o tema em sua gestão.
Como foi essa transição do seminário para a vida científica e acadêmica?
Um aspecto importante em minha vida é a formação religiosa familiar. Venho de uma família polonesa extremamente religiosa, tanto que acabei indo para o seminário, com 11 anos, e fiquei até os 19. O seminário teve uma influência muito forte na minha vida, principalmente em termos de entender a fé como algo do dia a dia, e não como algo confinado a ritos, a ir à missa, esse tipo de coisa. Nesse sentido, os padres foram muito importantes em minha formação no seminário, e foi de lá que veio aquela visão de que é possível viver a vida científica, como pesquisador, sem que haja dificuldade com a fé.
Algum professor do seminário, em especial, contribuiu para despertar seu interesse pela ciência?
Desde o ensino fundamental, que naquela época chamávamos “primeiro grau”, sempre tive predileção por Ciências. Mas, no ensino médio, ou “segundo grau”, tive um professor leigo, um estudante de Medicina em Curitiba que nos dava aula de Biologia, que foi muito importante. Era uma pessoa extraordinária, para muito além da sala de aula. Apesar das limitações, conseguia introduzir elementos práticos; para aprender Zoologia, por exemplo, saímos a campo para buscar insetos, borboletas, ou íamos ao Passeio Público observar os animais; também saíamos para estudar Botânica… ele de fato foi uma pessoa importante para minha vocação científica. Posso dizer que talvez mais de 90% dos ex-seminaristas que conheço, que estudaram comigo, foram para a área de Humanas, fizeram Letras, Direito, Comunicação. Sinceramente não sei de nenhum outro – acho que fui o único – a ir para a área das ciências.
E como foi o começo de sua carreira nas ciências e na universidade?
Fiz minha graduação na Universidade Católica do Paraná, que hoje é a PUCPR, no fim dos anos 60. Dom Manuel [da Silveira d’Elboux, arcebispo de Curitiba entre 1950 e 1970] tinha fundado a universidade em 1959, pegando as faculdades católicas de Curitiba e unindo-as numa universidade. Cada faculdade estava a cargo de uma congregação, então foi uma transição demorada até haver uma administração única. A universidade mesmo só se firmou em 1973. Eu estudei na Faculdade Católica de Filosofia, Ciências e Letras, que ficava perto do Teatro Guaíra. Os professores eram bons nomes da sociedade, Rudolf Lange, Ralph Hertel, mas não havia pesquisa. Isso fez com que, assim que eu terminasse a faculdade em 1969, já no ano seguinte eu fosse para a Federal, onde havia pós-graduação em Bioquímica. Meu grande objetivo era, na verdade, a Histologia, mas não havia essa pós aqui, então fui à Bioquímica. Estava quase me rematriculando quando alguém de São Paulo que estava visitando Curitiba me disse: “A USP está abrindo um doutorado em Histologia, por que você não vai para lá?” Peguei o ônibus naquela mesma noite e deu tudo certo. Redirecionei minha história para São Paulo, onde fiquei por quase quatro anos e de onde saí com o doutorado em Histologia, em 1976.
Posso dizer que a USP fez minha cabeça em termos de universidade. Eu me considero um uspiano, a USP é para mim aquilo que chamam de alma mater, aquela universidade que lhe deu aquilo que você em certo aspecto é e será sempre. Lá entendi o que realmente é uma universidade, o que ela deve ser, qual o problema da universidade no Brasil, o que é a ciência… Vinha muita gente do exterior. Estamos brigando aqui pela internacionalização, e já nos anos 70 a área biomédica da USP não passava um mês sem trazer alguém de fora do país. Isso nos abriu os olhos para a ciência internacional, e foi daí que surgiu meu primeiro pós-doutorado, na Suécia: um pesquisador de lá veio para a USP, se interessou pelo meu trabalho e me convidou. Nesse meio tempo voltei para a UFPR para trabalhar, como concursado. Foi nos anos 70 que a UFPR começou a se voltar para a pesquisa, até então era quase exclusivamente voltada ao ensino. Fiz outro pós-doutorado nos EUA, nos anos 80, e ainda voltei para lá nos anos 90. Também lidei com gestão universitária a partir da década de 80, tanto na UFPR quanto no Ministério da Educação. Foi fantástico trabalhar com o Cristovam Buarque, e lá criamos o que viria a ser o ProUni.
À exceção da PUCPR, toda a sua carreira foi desenvolvida em ambientes laicos. Havia algum tipo de discussão sobre ciência e fé, ou estranhamento por parte dos colegas, superiores e alunos?
Não havia patrulhamento nenhum, tanto que o Instituto Ciência e Fé, que hoje é dirigido pelo professor Aroldo Murá, surgiu no ambiente da UFPR, tendo à frente Newton Freire-Maia, um católico muito importante, e com a participação de pessoas da área de Humanas da UFPR, além de membros da Católica. Não havia essa conversa de “olha, isso aqui não tem nada a ver, Deus não existe”. Eu rezava o Pai-Nosso antes de começar minhas aulas na UFPR e nunca houve protesto ou reclamação na direção.
A fé, em geral, era vista como algo perfeitamente corriqueiro. Mesmo na UFPR existiam e existem movimentos ligados à fé. Quando estive lá, no próprio setor de Ciências Biológicas havia um grupo que toda terça-feira se reunia para rezar e conversar sobre religião. Era um grupo ecumênico, com gente de várias linhas religiosas. O grupo da UFPR era bem eclético, de funcionários da limpeza até pesquisadores. O Natal e a Páscoa na Federal eram celebrados na capela, com padre rezando missa. A universidade tinha capelão, o padre Gusvato, um jesuíta extremamente culto, capelão da UFPR e da Casa do Estudante Universitário, onde morava e da qual só saiu por causa de uma doença. Outro caso é o da professora Glaci Zancan, um nome respeitado nacionalmente tanto do ponto de vista científico quanto de liderança voltada para a política científica. Nunca a vi falando de religião, mas, quando ela faleceu, no velório havia muitas freiras que trabalhavam com crianças abandonadas, meninas em risco, e descobrimos que ela destinava parte do salário a esse trabalho. Conversando com as irmãs soube que a Glaci ia lá, assistia à missa…
Hoje, talvez como fruto do mundo que vivemos, existe mais uma “patrulha laica”. Acho que esse processo começou em meados dos anos 2000, principalmente depois do 11 de Setembro. Foi quando começaram a querer tirar crucifixos e outras ações semelhantes. Não sou contra Estado laico; o Estado tem de ser laico, mas o laicismo não pode virar fundamentalismo. Hoje, rezar antes da aula com certeza daria até processo.
E no exterior? A Suécia é um país altamente laicizado, já nos EUA há uma polarização forte que se reflete também na discussão sobre ciência e fé…
A fé na Suécia é um caso complicado. Era assim nos anos 70 e, pelo que sei dos amigos que mantive lá, continua igual. Levamos um mês pra descobrir onde havia missa. E, quando achamos, era um porão de um estabelecimento comercial em que uma vez por semana um padre celebrava. As igrejas de Estocolmo, quase todas protestantes, no fundo são pontos de visitação turística. Nos Estados Unidos fiquei em Connecticut, um estado bem conservador, com forte presença judaica e baixo número de católicos, embora a paróquia local estivesse sempre cheia de gente e tivesse catequese para minhas filhas. Dentro da universidade discutia-se questões de ciência e fé; há essa tradição americana e europeia das palestras e debates do meio-dia, anunciados em murais, e os temas podiam ser bem profundos. A Universidade de Connecticut é referência internacional em pesquisas sobre experiências de quase-morte, por exemplo. Mas vi debates sobre “Gênesis sim, Darwin não”, discussões sobre o papa João Paulo II… Na questão da pesquisa, havia suspeitas de que certas agências privilegiavam alguns segmentos com base em crenças religiosas. Veja o caso de George W. Bush, que barrou ao máximo a pesquisa com células-tronco embrionárias nos EUA durante seu governo. Em alguns casos percebíamos que havia coisas acontecendo relacionadas à fé, mas uma fé colocada como algo que se sobrepunha à ciência. Os EUA têm, realmente, essa característica.
Como todas essas experiências moldaram a sua visão sobre a relação entre ciência e fé?
Concordo 100% com Francis Collins, em seu livro A Linguagem de Deus. Vejo naquilo um testemunho fantástico de quem tem um cabedal científico extraordinário e consegue conciliá-lo com a fé, principalmente em relação ao Evangelho, toda a beleza que perpassa os Evangelhos, as parábolas. Eu tenho exatamente essa mesma convicção. Mais que isso: acho que a fé ajuda o cientista, porque ele consegue enxergar no processo da ciência não apenas o fato material, o aspecto físico-químico, fisiológico, mas consegue, interligando tudo isso, ver a questão da transcendência, sem que ela tenha qualquer influência no sentido de preconduzir para conclusões, no estilo “se eu creio isso, isso tem de estar assim”. Não é desse jeito. Acho que essa liberdade que caracteriza a ciência tem tudo a ver até com o livre arbítrio que está relacionado à fé, e que Deus nos dá. Acho que esse é um aspecto que sempre me ajudou muito nos questionamentos. É verdadeira essa noção de que os cientistas costumam ter menos fé, há estatísticas nos EUA segundo as quais a proporção de ateus entre os cientistas é bem maior que entre a população em geral, mas imagino que isso seja resultado de uma visão um tanto distorcida do que é, de fato, a fé. Ela não é algo que aprisiona ou limita. Pelo contrário: a fé é algo que nos leva a ver com muito mais abrangência aquilo tudo que está acontecendo.
Como as universidades, e as instituições católicas em particular, podem contribuir para criar e fortalecer essa ponte entre ciência e fé?
As universidades – não só as católicas, mas principalmente as católicas – precisam ter mais coragem, mais arrojo nessa questão da fé e da espiritualidade. É uma falácia a ideia de que os nossos alunos não querem nem ouvir falar de Deus ou de espiritualidade. O irmão Clemente, que está deixando o cargo de reitor, fez uma pesquisa para medir o nível de espiritualidade dos nossos alunos, e inclusive apresentou os resultados no Brasil e no exterior. Em síntese, a conclusão foi de que 95% dos nossos alunos gostariam que se falasse mais de espiritualidade. Mais que isso: quase o mesmo porcentual esperava que seus professores dessem testemunho. Segundo os alunos, muitos docentes simplesmente fogem do assunto, alegando, por exemplo, que são professores de outra coisa. Cerca de 80% dos estudantes disseram rezar, e não só no dia da prova (risos). Isso mostrou que há vontade e disposição do jovem para que se desperte nele a busca pelo transcendente, a noção de que existe algo além disso que vemos aqui, que Deus não é um indivíduo pronto com a espada numa mão e um livro na outra, anotando tudo e querendo mandar para o inferno por qualquer coisa.
Por isso digo que a PUCPR tem de ser uma universidade diferente. Aqui é o ambiente pra fazer isso, discutir fé com estudantes, a relação entre ciência e fé. E eu pretendo incentivar isso. Estamos pensando, por exemplo, em mudar a recepção dos alunos no ano que vem. Nós, professores, temos de nos envolver, não deixar tudo para a Pastoral Universitária. Nós, no dia a dia, temos de dar aquele testemunho. Claro, não falo de doutrinar ou ler a Bíblia na sala de aula, mas de transmitir valores para eles. São Marcelino Champagnat, o fundador da ordem marista, não foi um educador. Foi um homem apaixonado por Deus e que quis que, por meio da educação, as pessoas descobrissem Deus. Eu pergunto aos professores quão perto ou quão longe estamos dessa missão. Isso precisa nos preocupar tanto quanto a excelência na educação e na formação. Nós estamos aqui com uma missão muito específica. É tão fácil o mundo externo invadir a universidade católica e dizer “isso não, deixem de lado essa coisa de fé, o que importa são outras coisas”. Sim, temos de internacionalizar, inovar, trabalhar para transformar a pesquisa em bem-estar, mas também precisamos dessa percepção de que temos de dar algo mais a esse aluno. Nosso universitário não pode ser como um passageiro que entrou aqui em 2013 e saiu em 2016 ou 2017 como se nada tivesse acontecido, só com um diploma na mão.
E como os docentes da PUCPR encaram, hoje, o diálogo entre ciência e religião?
Em geral, parecem encarar de uma forma boa, mas é preciso saber se é assim porque simplesmente não se discute o tema ou porque existe mesmo a convicção de que há conciliação. Não sei dizer com certeza porque, a bem da verdade, não trabalhamos muito esse tema aqui. Precisamos trabalhar mais. Claro, não exigimos que os professores tenham de ser católicos ou ir à missa, como outras universidades católicas no exterior fazem. Pedimos apenas que eles não façam proselitismo anticatólico e que nos respeitem. Temos docentes ateus, de religiões não cristãs, sem problema. Mas falta um trabalho na direção de debater ciência e fé. Há aqui grandes pesquisadores que teriam todas as condições de discutir esse tema, em especial na pós-graduação, onde estamos bem alheios a essa realidade. Temos de pensar num trabalho mais sólido nesse campo. Há quatro disciplinas do chamado “eixo humanístico”, que todos os alunos da PUCPR fazem: Cultura Religiosa, Ética, Processo de Conhecer e Filosofia. Não sei se elas estão sendo encaradas pelos alunos como mera formalidade ou se são levadas a sério. Essas disciplinas oferecem uma boa oportunidade de discutir ciência e religião. Quero dar muita atenção ao nosso Instituto Ciência e Fé, que está indo bem e está trazendo um enfoque interessante, com encontros com temas abrangentes. Há bolsistas de iniciação científica trabalhando no instituto, e queremos que ele seja um local de produção de saber, que publique, que se faça presente na opinião pública, que se consolide academicamente, que cumpra seu papel de discutir ciência e fé e que leve isso para toda a universidade.
A pesquisa na PUCPR apresenta algumas peculiaridades; por exemplo, não usa embriões em experiências científicas. Isso faz falta, ou é encarado como uma limitação indevida?
Coordenei o laboratório de células-tronco por muitos anos. Por que não admitimos fazer pesquisa com embriões? Por causa da postura de que a vida começa na concepção. Como tecnologicamente ainda não temos como tirar uma célula do embrião e mantê-lo vivo, estamos matando uma vida humana. Isso contraria um princípio básico. Qual a nossa solução? Buscar outro caminho, como estudar células-tronco adultas, que todo organismo tem e que são “células de reserva” do corpo, totipotentes. Há outras situações, como o aborto, que caem na mesma situação. A diferença entre um embrião de uma semana e de cinco meses é a quantidade de células e sua diferenciação.
A quem diz que a ciência não deveria estar “limitada” pela reflexão ética, respondo que ciência e ética não andam separadas por uma razão simples: a ética está ligada diretamente à verdade. A ciência talvez possa nunca encontrar a verdade, mas a busca. Sempre que tenho um projeto sendo desenvolvido, estou procurando descobrir a verdade. Newton Freire-Maia dizia que ciência e verdade são como dois trilhos de uma estrada de ferro. Um sempre precisa estar ao lado do outro, mas eles nunca se encontram. No momento em que concluo uma pesquisa e resolvo um problema, aparecem diversas outras dúvidas que me obrigam a seguir pesquisando, e nesse sentido a verdade é inalcançável. Mas ela não pode prescindir da ética. O cientista não precisa trabalhar com a Bíblia aberta, mas tem de seguir princípios basilares da ciência, como o respeito pela verdade.
Dito isso, ressalto que as universidades católicas também têm como missão serem preceptoras da Igreja. A Igreja não tem o condão de ser infalível em tudo, e precisa de preceptores. Nós fazemos isso. No momento em que uma posição cientificamente comprovada contesta a posição da Igreja, precisamos discutir e ter a coragem de enfrentar o problema. Pensemos em duas situações condenadas pela Igreja, como o divórcio e o casamento gay. Temos de estudá-las sob o ponto de vista psicológico, antropológico, e apresentar à Igreja as nossas conclusões. Nesses casos, não é porque a Igreja diz “somos contra” que não se pode estudar. Esse intercâmbio é uma das belezas da relação entre ciência e fé.
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