Ni Hao,
Em 1978 nascia Terry, ou melhor,冯 鹏 飞Féngpéngfēi. Mais um filho da China que tenho o imenso prazer de apresentar para vocês.
Terry é colega de trabalho do Luiz. Os dois se encontraram e foi tipo amor à primeira vista. Não se desgrudaram nunca mais!
Acho que ele é a pessoa mais doce e educada que já conheci e que, além disso, carrega um inesperado, fino e extremamente afiado senso de humor. Isso sem falar da inteligência e da cultura geral que nos enchem de novas histórias cada vez que sentamos para conversar. Mais do que amigo, ele foi eleito nosso anjo da guarda por conta do acidente da Mariana, quando saiu à uma da manhã da sua casa para levar-nos ao hospital, onde ficou até às 5 da madrugada do nosso lado. Até hoje não temos como agradecer tamanha generosidade!
Se eu pudesse resumir a vida do Terry em uma palavra, depois de tudo que eu ouvi em nossa entrevista, sentados no seu lugar favorito, o Starbucks, essa palavra seria “competição”. Com certeza, Terry é apenas mais um dos chineses que lutaram e lutam para conseguir um lugar ao sol num país com mais de um bilhão de habitantes. Mas o preço foi e tem sido extremamente alto para os jovens daqui.
Terry é filho único (naquela época já vigorava a política do filho único) e neto de funcionários do Governo. Seu avô foi oficial de segurança do Mao Zedong (que no Brasil, não me perguntem o porquê, se fala Mao Tse-tung) e aceitou sair da capital para ir trabalhar no interior, contribuindo assim com o crescimento do país. Primeiro a China, depois a família era o pensamento correto daquela época.
A cidade em que cresceu, Shiyan, é hoje a segunda base de automóveis da China, mas na época, não havia nada por lá. Shiyan, assim como Shenzhen, é uma cidade de migrantes, só que de pessoas que fugiram do litoral para o interior com medo da Guerra Fria.
Terry teve a grande oportunidade de ver fantasias virarem realidade como nos contos de fada. Carros, casas, marcas internacionais, estrangeiros andando pela rua simplesmente não existiam naquela época. Nos últimos 20 anos, a China se abriu para o mundo e o país foi invadido por luxos que os chineses nem poderiam sequer imaginar que existiam.
Quando nos olham com curiosidade nas ruas e somos até mesmo parados para tirarem nossas fotos, isso nada mais é do que o resquício de um país que viveu durante anos rejeitando e atacando qualquer coisa que viesse do ocidente, como pregava a Revolução Cultural.
Terry se lembra de que, até uns 10 anos de idade, era obrigado a ler na escola os livros que exultavam Mao e ainda tinha que jurar de morte os capitalistas. Ele perguntava ao pai por que estes tais capitalistas tinham que morrer, mas o pai também não sabia, ou não queria, ou não podia responder.
Ele foi uma criança feliz e excelente aluno, tipo primeiro da classe, e os pais nunca precisaram mandá-lo estudar. Mas quando Terry chegou finalmente ao Ensino Médio, a competição tomou conta da sua vida. Ele tinha que disputar uma vaga na Universidade com outros 15.000 alunos, sendo que os alunos da sua cidade precisavam ter notas 40% maiores do que os de Beijing. Ou seja, mais competição.
Sua rotina de estudos no Ensino Médio, internado na escola, era simplesmente a seguinte:
7:00 às 12:00 – aula
12:00 às 13:00 – almoço
13:00 às 18:00 – aula
18:00 às 20:00 – jantar
20:00 às 23:00 – aula
Isso acontecia todos os dias, de segunda a segunda, sem fim de semana e com meio dia de folga a cada duas semanas!!!
A metodologia de ensino era do tipo “alimentar o pato”, enfiando matéria goela abaixo das crianças até elas não aguentarem mais.
Mas o pior mesmo era o sentimento de humilhação perante os colegas. O aluno era medido apenas pelas suas notas nas provas que eram distribuídas, na frente de todos, por ordem decrescente. Os melhores primeiro, os piores por último para que todos soubessem quem eram os inteligentes e quem eram os burros da turma. Obviamente, que o bullying corria solto a ponto de ocorrerem, com certa frequência, casos em que os “burros”, não suportando o peso do rótulo, literalmente matavam os “inteligentes”. Lembrem-se de que estamos falando de crianças de 14 anos!
Segundo Terry, a única coisa boa que aconteceu para ele naquela época foi ter conhecido a Seagle, 张兆君 Zhāngzhào Jūn, atualmente sua esposa. Eles se conheceram aos 16 anos de idade e passaram a sentar juntos. Terry já era apaixonado por ela e Seagle estava meio que pagando para ver. O namorinho dos dois levou ao desespero pais e professores que acreditavam que eles perderiam o foco no que realmente importava na vida: estudar.
Terry, apesar desta ter sido a pior época da sua vida, manteve a tradição e obteve a maior nota do Ensino Médio, o que lhe deu o direito de escolher entre ir para Universidade em Hunan, perto da Seagle, ou ser espião do Governo.
Sim, leitores, o governo chinês estava recrutando novos espiões (?!) que falassem inglês (e isso, o Terry fazia muito bem) para trabalhar sob um contrato de 17 anos em Beijing. Terry teria uma vida sem preocupações, com tudo pago, porém sem saber o que faria, quando e onde.
Imaginem o que é dizer para um garoto de 18 anos que ele pode ser espião do Governo? Macaco, quer banana? O fato é que os pais do Terry tiveram um rompante de lucidez e acharam melhor ele ir cursar a Universidade mantendo a família unida por mais tempo.
Terry diz ter passado alguns anos pensando no sujeito que teve a segunda maior nota e que ficou com seu lugar de espião, até que um dia, os dois se encontraram e ele descobriu que o cara tinha pedido demissão por que só fazia trabalho burocrático! James Xing Ling Bond!
Bom, Terry acabou se formando, começou a trabalhar, ralou para provar que ele poderia ser um excelente profissional de TI mesmo tendo se formado em literatura; acabou se casando e se mudando para Shenzhen onde, em 2009, nasceu o 冯迦煜 Féng Jiā Yù, Jerry Feng.
Foi aí que, segundo ele, sua cabeça mudou. Ele passou a ter certeza de que esta competição desenfreada para ser o melhor na escola ou o melhor no trabalho não fazia sentido.
Ele diz: “Nada disso é possível controlar. Você pode passar de anjo a demônio no seu trabalho por conta da política. A única coisa que você pode controlar é a qualidade do amor que você dá para o seu filho. Se meu filho não tiver as melhores notas da escola, mas for uma criança feliz, então estarei realizado”.
E continua, com certa revolta reprimida na voz: “Até hoje, este método de ensino prevalece na China, só que de forma velada. O Governo quer mudar, mas a tradição é mais forte. Os pais reconhecem que precisam dar mais tempo para suas crianças, ao mesmo tempo em que as mandam fazer o dever de casa. A diferença é que hoje existe a Internet. Então, o “burro” descobre que outro burro como ele obteve a melhor nota no exame de uma universidade nos Estados Unidos. Então, nem tão burro assim, né? Os chineses são os estudantes mais profissionais do mundo! Mas só aprendem aquilo que outra pessoa pensou, e não o que ele foi capaz de descobrir por si mesmo. Se nossos estudantes tiram as melhores notas mundo afora, é porque estamos mais familiarizados com os exercícios de tanto repeti-los. E só! Por isso, nós somos bons em copiar o que os outros já fizeram e ruins em criar novos produtos”.
Terry, como já deu para perceber, faz parte da classe pensante da China, capaz de olhar para o passado e reconhecer a catástrofe que aconteceu com o país na época da Revolução Cultural. O chinês médio ainda acredita que Mao foi uma benção que a China recebeu dos céus.
Seagle também é a típica executiva ocidental, trabalhando como gerente de uma das maiores empresas de Recursos Humanos da China, sem tempo para família, atropelada por telefonemas e reuniões país afora.
Apesar de serem os chineses do futuro, Terry e Seagle mantêm algumas tradições como a de viver na mesma casa com os próprios pais. E eles vão mais longe: parte do ano com os pais dele e parte do ano com os pais dela. Ou seja, os avós estão ajudando a criar e mimar, para receio do casal, o pequeno Jerry Feng.
Falei para o Terry que, a esta altura da nossa entrevista, aos olhos dos brasileiros, ele passaria de “bom moço” a “assassino”.
Ele disse: “Eu não acho que a gente matou uma pessoa. Tecnicamente, se o feto tem menos de três meses, não há problemas. Se você dá à luz e depois larga o seu filho, isso sim é assassinato. Na China, nós somos os bons moços porque fomos responsáveis e interrompemos uma gravidez cujo filho não teria amor suficiente da nossa parte. Não fizemos isso por nós, mas pela criança.”.
Terry é um chinês privilegiado que já viajou para vários locais do mundo como Estados Unidos, Japão, Cingapura, Malásia, Dinamarca, Alemanha, Emirados Árabes, Índia e até Brasil. E o que ele achou?
“O Rio é a cidade mais maravilhosa do mundo! O ambiente, o clima, a geografia, as pessoas, tudo é incrível! No Brasil, as pessoas são calorosas e você pode dançar com alguém com quem nunca conversou antes e não tem o menor problema! Todo mundo tem um jeito especial de tratar você. Até mesmo o cara que ficou tomando conta do meu carro (flanelinha) e queria me tirar dinheiro era simpático!”
Sim, Terry foi maluco suficiente para ir de São Paulo ao Rio dirigindo um carro alugado, embora tivéssemos implorado para não fazer isso. Segundo ele, quem dirige na China, dirige em qualquer lugar do mundo. É uma verdade!
A comida então, Terry adorou! A ponto de ficar me cantando para abrir um restaurante brasileiro aqui na China. Quando esteve no Brasil, ele comprou 48 latas de Brahma (ele lembra bem da marca) que foram devidamente consumidas em duas semanas, provavelmente quentes, como os chineses costumam beber cerveja. Como diz ele, “por incrível que pareça, brasileiros e chineses possuem muita coisa em comum!”.
Terry, concordo, mas cerveja no Brasil se bebe estupidamente gelada, tá?!!! 🙂
Bem, leitores, tirando pelas histórias de vida da Clair e do Terry, percebemos que os filhos da China do século vinte e um são trabalhadores, esforçados, com uma gigantesca capacidade de auto superação, amorosos e muito conscientes. E, ainda por cima, amam o próprio país.
Clairs e Terrys estão escrevendo a história de uma nova China e, pelo que estamos vendo, vai ser realmente muito difícil não ter este país como a grande potência dos próximos anos.
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