Ni Hao,
Semana passada, saí para bater um papo com a Clair, colega de trabalho do Luiz e grande amiga da família. O assunto era o mesmo que aflige meninas de todas as partes do mundo: namorados. Fui preparada para fazer o tradicional discurso “perder o namorado não é o fim do mundo, blá, blá, blá”, mas acabei saindo do encontro completamente tomada de emoção e com os olhos cheios de lágrimas. Preparem-se, leitores, para ouvir uma história que só a China é capaz de escrever!
Clair, apesar de parecer uma adolescente, já está com 25 anos, o que vem preocupando muito os pais: ela ainda não se casou e nem tem namorado firme. Na China, se a mulher chega aos 30 anos sem ter casado, é sinal de que tem algum “problema”. Sua irmã, um ano mais velha, também está “encalhada”, como dizemos preconceituosamente no Brasil.
Um fato tão simples quanto ter uma irmã mais velha passaria despercebido em qualquer história de vida. Mas não na China. Quando a Clair nasceu, a política do filho único já existia. Seu pai, que trabalhava para o Governo e que deveria ser exemplo de cidadania, foi ameaçado de ser dedurado ao Partidão e, por consequência, perder o emprego e a honra.
Assustada com a eminência de um desastre familiar, a mãe da Clair, contra a vontade do pai, entregou-a a uma tia com a qual viveu seus primeiros nove meses de vida. Em seguida, era para a Clair ter sido dada a um casal sem filhos, mas a suposta “adoção” acabou não acontecendo. Outra saída apareceu logo depois: trocar Clair por um menino de outra família, porém mais uma vez a “negociação” acabou melando. Por fim, nossa chinesinha (aposto que vocês já estão cheios de carinho por ela) foi confiada aos melhores amigos de seus pais que já possuíam outros sete filhos.
Clair lembra que todos os dias sentava nas escadas da casa dos pais adotivos e ficava lá, chorando. Quando completou três anos de idade, sua mãe não conseguiu mais segurar a barra e levou-a de volta para casa.
Embora ainda muito pequenininha, Clair instintivamente sabia como se comportar para não ser notada: quando alguém vinha visitar a família, se escondia e ficava bem quietinha até que a pessoa fosse embora. Apenas uma coisa ela se recusou a fazer: chamar a mãe de tia. Isso seria demais para uma menininha clandestina, assustada com a possibilidade de ter que abandonar novamente o próprio lar.
Segundo ela, as melhores lembranças de sua infância estão relacionadas aos momentos em que estava doente e sua mãe se sentia livre para exercer o papel ilegal de “mãe da Clair”.
Por tudo isso, até a adolescência, Clair odiou a mãe. Em seu diário de menina, ela anotava periodicamente o “Nível de Ódio a Mamãe”. Até que, aos 13 anos, ela teve que mudar de cidade para cursar o Ensino Médio e descobriu, para sua surpresa, que grande parte de seus coleguinhas tinha sido criada pelos avós por conta da política do filho único! Ou seja, Clair poderia se considerar privilegiada por ter sido, apesar de tudo, criada pelos próprios pais!
Bom, vocês devem estar se perguntando: que mãe é essa, meu Deus? Dando a própria filha?
Leitores, a mãe da Clair, mais uma filha deste país tão complicado, não merece ser julgada. Hoje, com 48 anos, tem uma vida relativamente estável trabalhando para um banco do governo. Mas não foi sempre assim.
Ela, de uma família de seis irmãos, começou a trabalhar aos 16 anos numa fábrica no lugar do seu pai. Naquele tempo, os pais podiam “transferir” o emprego para um dos filhos. O que ninguém sabe explicar até hoje é porque seu pai, em vez de transferir o emprego para o filho homem mais velho, escolheu justamente a mãe da Clair.
Atualmente, ela se sente responsável pelo irmão mais novo que não possui tantos recursos e sustenta toda a família dele como uma forma de homenagear, honrar e agradecer ao pai e à mãe já falecidos.
E o pai da Clair? Onde fica nisso tudo?
O pai, o mais velho de quatro irmãos, diante da morte do próprio pai, precisou trabalhar muito cedo para sustentar toda a família. Ele teve um casamento arranjado com a mãe da Clair pelos pais de ambos, o que poderia explicar, mas não justificar os casos extraconjugais que teve ao longo da vida.
Mas onde o pai da Clair enfiou os pés pelas mãos foi quando decidiu, vinte anos atrás, largar o “excelente” emprego no governo e tentar enriquecer numa nova cidade que surgia ao sul da China, Shenzhen.
No entanto, em vez de trabalhar e prosperar como tantos fizeram, ele se afundou entre mulheres e bebidas e levou a empresa à bancarrota. A mãe da Clair segurou a onda toda, desde a vinda do marido para Shenzhen, passando pelos seis anos em que ficou em casa sem trabalhar, tudo para não destruir a família e o futuro das filhas. Dá para imaginar o que seria a vida de uma mulher divorciada na China há 20 anos?
Hoje o pai da Clair possui um emprego estável, mas ainda permanece sendo o tipo causador de problemas da família. A mãe abriu mão da vaidade e economiza cada centavo para as filhas.
A avó paterna da Clair morou com eles, como manda a tradição, durante muitos anos. Sogra (vó da Clair) e nora simplesmente não se suportavam! O clima dentro de casa era tão pesado, tão pesado que Clair desenvolveu uma queda crônica de cabelo o que, pelo menos, serviu para forçar uma decisão familiar: ano passado a avó foi morar com a filha, já que nenhuma outra nora quis aceitá-la em casa.
E esta avó tão rabugenta? Quem merece? Esta avó, leitores, jamais conheceu os pais que, para não matá-la de fome, tiveram que dá-la em adoção para os pais do próprio marido, ou seja, ela praticamente se casou com o irmão. Desde os oito anos de idade, esta menina, que nunca foi à escola, trabalhou como fazendeira numa China que acreditava que apenas o trabalho na lavoura faria do país uma grande potência, enquanto matava de fome e mantinha na ignorância milhões de pessoas.
Embora não houvesse amor romântico entre os avós, eles tiveram cinco filhos (um deles o pai da Clair) até que o marido morreu de câncer aos 40 anos. Hoje, esta avó é uma mulher sem educação, como tantas outras que ainda vemos circulando pelas ruas de Shenzhen, intolerante, mas, segundo Clair, ainda capaz de momentos de gentileza.
Quem foi e continua sendo o grande suporte da Clair durante todos estes anos? Da Clair não, da família inteira? Sua irmã Cristine que, por ser a mais velha, precisa ter uma postura mais responsável. Num episódio em que o pai causou um acidente por dirigir embriagado e, por isso, ficou detido por 15 dias, a irmã assumiu seu lugar atendendo telefonemas de clientes para que ninguém percebesse sua ausência. Hoje, graduada em economia, acabou de conseguir um novo emprego onde ganhará o dobro do anterior.
Leitores, vocês acabaram de conhecer muito superficialmente três gerações de chineses batalhadores, que sofreram e ainda sofrem as consequências de viver em um país que, durante anos, se fechou em si mesmo e seguiu cegamente um líder equivocado e cruel. (Recomendo a leitura do livro Cisnes Selvagens a quem quiser conhecer um pouco mais sobre os últimos 100 anos da China).
Hoje, morando numa China totalmente diferente, quase não consigo acreditar que tudo isso aconteceu há tão pouco tempo. E como não sentir um profundo respeito e admiração por um povo que ainda escarra na rua, mas que está definitivamente dando a volta por cima?!
Clair, você e sua irmã fazem parte da nova geração de mulheres da China. Uma geração que tem as pontinhas dos pés num passado triste, mas a cabeça num futuro promissor. Geração de mulheres que trabalham fora, se sustentam e não precisam casar antes dos 30 só porque manda a tradição.
Mas, quando você finalmente se casar, quero estar por perto para poder conhecer a carinha dos novos filhos desta China tão surpreendente.
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